Há alguns anos, na Revista de Finanças e Direito Tributário da Editora RT, escrevi artigo sob o título "Estadania x Cidadania", no qual, entre outras observações, assinalei que "Não somos uma nação de direitos conquistados. Mas de direitos negados ou concedidos pelos detentores do poder." Acrescentei: "Desacato à autoridade é crime. Desacato ao cidadão é praxe."
No Brasil atual, sob uma Constituição plenamente democrática, a realidade nua e crua de nosso cotidiano mostra a grande distância entre o ideal e o real. O Estado está cada vez mais presente em nosso dia a dia, diante do mar de leis a que somos submetidos, como se tudo que fosse legal fosse realmente constitucional.
Basta atentarmos para o que acontece no campo fiscal-tributário. Tudo se justifica para tirar mais do que o dinheiro (ativo circulante) e outros bens (ativo fixo), que integram nosso patrimônio. Esse patrimônio é atacado ou por atos dos amigos do alheio, nas esquinas ou na invasão de nossos domicílios, ou por meio de atos exercidos supostamente no cumprimento da lei.
O grande problema está menos na primeira dessas situações, do que na segunda. Naquela, quando dá tempo, podemos ainda buscar o amparo da autoridade policial. Nesta outra, será a autoridade policial a quem estaremos a temer, só nos restando recorrer à autoridade judicial na busca do remédio jurídico para sanar, se possível, o dano sofrido.
Ainda hoje, tive oportunidade de comentar notícia no site
www.consultorjuridico.com.br sobre o caso Schincariol, desencadeado com todos os alardes possíveis, pela Polícia Federal, mediante prisões "preventivas", apreensão de documentos, invasões de escritórios de advocacia, tudo "no cumprimento de ordem judicial."
Indaguei o porquê dessas prisões, realizadas como se os empresários detidos fossem pessoas perigosas à sociedade. O que se quer com essas prisões? Intimidar os demais cidadãos a serem "fiéis contribuintes", a darem a César o que é (mas nem sempre deveria ser) de César?
É o caso perguntarmos: Até onde vai a volúpia desse César? Quando deixa de ser legítima a exigência de um tributo? A resposta está aí, diante de nossos olhos: Quando um número cada vez maior de pessoas prefere viver à sombra do Estado, sem existência formal, sem formalizar seus negócios, sem constituir sociedade formal. Em suma, viver na informalidade, o que significa, aos seus olhos "só negar o pagamento de tributos" por uma questão de sobrevivência, e aos o olhos do Fisco e do Estado, "crime de sonegação fiscal".
É fácil tudo criminalizar quando mais do que tudo só interessa arrecadar. Arrecadar seja a que pretexto for. Arrecadar sob o suposto argumento de que o tributo é consequência do viver em sociedade. Arrecadar tributando o que tributado não pode ser (a moeda circulante).
No entanto, sob o Estado Democrático de Direito, em nosso meio, prisão por dívida só pode ocorrer em duas situações: no caso de depositário infiel e no caso de não pagamento de alimentos, no âmbito do direito de família. Na área tributária, toda prisão constitui meio arbitrário de forçar o detido a pagar tributo que o poder tributante considera devido e não pago (ou, como se diz, "sonegado"). Não desconheço a distinção entre "sonegar" e "não pagar". Naquele, não se comunica à autoridade a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária. Neste, o fato é comunicado, mas o pagamento não é feito. Dir-se-á que na primeira dessas hipóteses, a prisão resulta da prática de crime de mera conduta. Mas, mesmo aqui, o posterior pagamento do tributo sonegado elide a punibilidade, pois, em última instância, ao Fisco interessa o recebimento do valor do tributo. Que, nesses casos, já vem acrescido das penas pecuniárias.
Ademais, nem sempre ocorre coincidência de pontos de vista. De um lado, o contribuinte pode estar deixando de recolher determinado tributo por estado de necessidade, ou, mesmo, porque considere ilegal ou inconstitucional o tributo, ou porque considere o tributo legal ou constitucional, e, inobstante, inaplicável à sua situação. Como ocorre na isenção que o Fisco insiste em não aceitar, no que respeita às sociedades uniprofissionais de profissões regulamentadas, autorizadas por lei a não pagarem Cofins.
Voltando ao caso Schincariol, tudo o que foi feito pelas autoridades policiais prescindiria da prisão dos empresários e da invasão de escritórios de advocacia. Ainda que possa haver ou ter havido alegada sonegação fiscal, só mesmo uma autuação fiscal em que o processo administrativo seja instaurado, dando-se aos autuados amplo direito de defesa, irá ao final determinar se há ou não há crédito tributário a ser exigido e cobrado. Cobrança que dependerá de execução fiscal, se --feita a apuração e constatado eventual débito -- não vier a ser objeto de pedido de parcelamento e final pagamento. Aquele suspende a exigibilidade do crédito tributário. E este o extingue.
Não é preciso dizer, ademais, que há três tipos de contribuintes. Os que seguem a rigor as leis tributárias (o que seria desejável, fossem elas todas constitucionais e razoáveis), os que não querem segui-las e os que não as conseguem seguir. Para o Fisco, estes dois últimos estão na mesma categoria: a de sonegadores ou inadimplentes. No entanto, há situações em que os primeiros desses contribuintes, assim como os das outras duas categorias não deveriam mesmo pagar determinados tributos, apesar de previstos em lei. Assim, todos eles terão o pleno direito de defender seu patrimônio, pela via do devido processo administrativo ou mesmo judicial. Quem pagou o que não devia, tem todo o direito de ressarcimento, mediante devolução em dinheiro, do que indevidamente pagou, sem se esquecer que a melhor alternativa é a compensação tributária. Quem não pagou, deve defender-se atacando a ilegalidade do ato ou a inconstitucionalidade da lei, sempre que for o caso.
Exemplo de tributos cuja inconstitucionalidade cabe hoje discutir são o PIS e a Cofins, tanto cumulativos, como não-cumulativos. É preciso mais do que a existência de lei para sua validade. A lei deve estar de acordo com o ordenamento constitucional. E, nesse caso, isso não ocorre.