domingo, janeiro 21, 2007

Estado Democrático de Direito e o Poder Público

Plínio Gustavo Prado Garcia
Prado Garcia Advogados
Introdução

Reza o artigo 1º da Constituição Federal de 1988, que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Como corolário do Estado Democrático, o parágrafo único desse artigo determina que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
E, como Estado de Direito, embasa-se no princípio constitucional da legalidade.
Disso, algumas conseqüência advêm: o Poder Público é o poder do povo. Não é o poder do agente estatal. É o poder do povo exercido nos termos da lei por meio do Estado e dos agentes públicos, no interesse da coletividade e do bem comum.
O Estado é ente de direito. Não é ente material. Não é pessoa natural. Assim, existe nos termos e limites que lhe são conferidos pela Constituição.
O Princípio da Legalidade
No Estado Democrático de Direito não pode o agente público agir senão segundo os termos da lei. E esta, a lei, não pode dar ao Estado direitos que se contraponham ao interesse de cada pessoa de Direito Privado, seja pessoa física, seja pessoa jurídica, pois o Estado, aí, não é nem constitui um fim em si mesmo.

Como a Administração Pública está adstrita à lei, aos limites da lei e aos poderes e deveres que da lei advenham, não pode agir na lacuna da lei, como se lei houvesse. Em outras palavras, depende o administrador público da lei que pautará sua conduta. Já, no Direito Privado, tudo é permitido, na falta de lei restritiva ou proibitiva. Isso se explica pelo fato de que a existência humana independe de prévia lei. Salvo da lei natural. A lei jurídica vem, depois, como requisito de bom convívio social, pautando as condutas humanas, sem privar-nos da liberdade de ação.
Analogia - Quando cabe sua invocação
Isso significa que o agente público, a Administração Pública, não pode agir na falta de lei. Não pode valer-se da analogia para preencher o vazio de lei inexistente. Não pode, por exemplo, valer-se da analogia para cobrar tributo. Não pode valer-se da analogia para atualizar o valor de tributo vencido e não pago pelo sujeito passivo da obrigação tributária. Tanto assim, que, nesse particular, foi necessária disposição expressa de lei, autorizando essa atualização de valor monetário.
Nem se diga, quanto à Administração Pública, que haveria enriquecimento sem causa desse sujeito passivo, caso pudesse pagar tributo vencido, com atraso e sem atualização de valor monetário. Poder-se-ia argumentar, aí, que a omissão do legislador em não editar tal lei equivaleria a propiciar ao inadimplente um favor financeiro ou monetário. E, ainda assim, essa omissão não daria direito nem poder ao administrador público ou à Fazenda Pública para exigir o crédito tributário com valor monetariamente atualizado. Não age nem pode agir a Administração Pública sem o amparo da lei. Se a omissão da lei pode favorecer, lei alguma pode causar lesão de direito.
O tema da atualização monetária
Analisando-se a legislação tributária, verifica-se que o crédito tributário, vencido e não pago no vencimento, submete-se a atualização monetária por expressa disposição legal.
O Fisco, insistentemente, invoca a necessidade de lei autorizadora da correção do valor monetário dos créditos do sujeito passivo perante a Fazenda Pública, como requisito para aceitar essa atualização de valor.
Ocorre, entretanto, que ninguém – aí incluída a Fazenda Pública – tem direito ao enriquecimento sem causa. Este, ocorrendo, gera lesão patrimonial e quebra o equilíbrio da relação jurídica, gerando injustiça. É ilícito auferir enriquecimento sem causa.
Assim, nada mais correto do que o Código Civil, artigo 884, determinar a reparação da lesão de direito e a atualização do valor monetário da reparação.
Todavia, antes mesmo dessa expressa determinação da lei civil, nada impedia pudesse o lesado pela falta de atualização do valor monetário de seu crédito invocar a analogia para suprir a lacuna da lei. E a analogia, neste caso, estava já nas mesmas leis que garantiam à Fazenda Pública a correção monetária dos créditos tributários.
Determina o Código de Processo Civil que o juiz não pode deixar de aplicar o direito alegando lacuna da lei. Na falta desta, buscando evitar ou sanar lesão de direito, deve valer-se da analogia. Em outras palavras, o juiz não faz a lei faltante, apenas se vale de lei em vigor, tomando-a como parâmetro para aplicá-la, por extensão, ao caso concreto. Situações análogas reclamam igual remédio jurídico.
Por isso mesmo, temos sustentado que todos os créditos do sujeito passivo perante a Fazenda Pública são passíveis de atualização monetária, sob pena de enriquecimento sem causa do Erário. Só não se atualizam esses valores apenas dentro de cada período de apuração, pois inexiste lei determinando a atualização monetária do crédito tributário, isto é, do crédito da Fazenda Pública dentro do período de competência.
Vale dizer que os denominados “créditos escriturais” de ICMS e IPI não são monetariamente atualizados dentro de cada período de apuração, pois isso exigiria lei específica, inexistente, porquanto a lei só determina a correção do valor da moeda quanto aos montantes vencidos e não pagos no vencimento.
Considerando-se como “créditos escriturais” os que sejam apurados e escriturados contabilmente dentro de cada período de competência (período de apuração), é evidente que serão escriturados extemporaneamente aqueles créditos que, sendo escrituráveis, não o tenham sido dentro do respectivo período de competência. São os chamados “créditos extemporâneos” em que, na realidade, o adjetivo não se há de aplicar ao substantivo “crédito”, mas ao momento em que se faz sua escrituração. Assim, ter-se-á escrituração extemporânea de um crédito que, sendo escriturável, passa, assim, a ser crédito escriturado. Evidentemente, só poderá ser escriturável um crédito de natureza financeira e conteúdo econômico, independentemente do fato que lhe haja dado causa. Não se escritura um crédito não financeiro, como o denominado crédito por uma dívida de favor.
Vejamos, agora, a questão dos saldos que se apurem ao fim de cada período de competência no âmbito de qualquer relação de débito e crédito, principalmente no campo tributário.
Evidentemente, esse saldo tanto pode ser devedor, do sujeito passivo perante o Fisco, como, ao contrário, pode ser saldo credor desse sujeito passivo diante desse mesmo Fisco.
Sob o Estado Democrático de Direito, não é lícito causar lesão de direito. A Administração Pública depende da lei para cobrar seus créditos e a seu valor aplicar atualização monetária.
É sabido que a atualização do valor da moeda para manter sua equivalência em termos de poder aquisitivo ao longo do tempo não se confunde com acréscimo financeiro, com vantagem financeira. Sua falta, no entanto, acarretará perda patrimonial, de natureza financeira e fundo econômico, em detrimento do lesado e em benefício de quem pague a dívida por seu valor nominal, ou de quem não aceite a atualização de seu valor na restituição ou na compensação.
Assim, a invocação da analogia pelo sujeito passivo da obrigação tributária, de modo a ter seus créditos contra a Fazenda Pública submetidos a atualização monetária é de rigor e de direito, dado que os desta contra aquele já vinham sendo de longa data atualizados, com base em leis específicas, tanto em nível estadual, quanto federal. Analogia de que não mais se necessita, com o advento do novo Código Civil, pois, como apontado, a atualização do valor do débito é expressamente determinado por seu artigo 884, ao vedar o enriquecimento sem causa.
Conclusão
Em suma, impõe-se rever, modificar e atualizar o entendimento jurisprudencial tanto do Egrégio Superior Tribunal de Justiça quanto do Excelso Supremo Tribunal Federal em relação à atualização monetária dos créditos do sujeito passivo perante a Fazenda Pública, quer pela aplicação da analogia antes do advento do novo Código Civil, quer pela sujeição ao comando contido em seu artigo 884.
Dessa maneira, sem atualização monetária ficariam apenas os denominados “créditos escriturais”, assim entendidos aqueles que se apurem e sejam lançados dentro dos respectivos períodos de competência. Atualizáveis monetariamente, seriam, portanto, os créditos vencidos e não pagos no vencimento, tanto quanto os saldos credores de um período encerrado (que não se compensem no período subseqüente ao de sua apuração), os saldos credores acumulados (por abrangerem mais de um período de apuração) e os créditos escrituráveis que, não tendo sido escriturados a seu tempo, venham a sê-lo extemporaneamente (os denominados “créditos extemporâneos”). No assim fazer, estar-se-á respeitando o Estado Democrático de Direito, por evitar-se o enriquecimento sem causa de quem quer que seja.
Verifica-se, desse modo, que em interpretação conforme à Constituição, o emprego da analogia a favor do contribuinte, na atualização monetária de seus créditos contra a Fazenda Pública em nada fere o princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS e do IPI, como nem se faz necessária lei para correção monetária dos saldos credores acumulados ou dos créditos "extemporâneos", se a lei a confere a favor da Fazenda Pública.
Nem se alegue que os cálculos do ICMS e do IPI sejam "meramente contábeis", pois contábeis são em virtude, antes de mais nada, de representarem valores financeiros e, portanto, de fundo econômico. E, por isso mesmo, essa relação de débito e crédito entre Fisco e Contribuinte em nada difere de qualquer outra relação de débito e crédito em qualquer outro negócio jurídico. Vê-se, em razão disso, inexistirem cálculos "meramente contábeis", mas, sim, cálculos passíveis de escrituração contábil, de contabilização. Que não se resumem nem se cingem ao IPI e ao ICMS.
Logo, a invocação e a aplicação da analogia atendem à necessidade de respeito à vedação do enriquecimento sem causa.
Cabe lembrar, por último, que a jurisprudência só se altera quando a parte lesada submete seu pleito ao Judiciário, demonstrando os pertinentes fundamentos de sua pretensão e as razões pelas quais o julgador deve acatá-los.