segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Novo Calote Governamental a Caminho

Começa em Brasília a se discutir proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre o que fazer para que a União Federal, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios venham a pagar o que devem a seus credores, por força de sentenças judiciais em que foram condenados e das quais não mais caibam recursos. Credores esses que há muitos anos já esperam receber seus créditos.

Seria interessante, caso não fosse uma aberração, um desplante e uma injustiça, permitir-se (mais ainda por emenda à Constituição) que um devedor pudesse impor ao credor as regras segundo as quais ele, devedor, aceitaria pagar a dívida ao credor. Mais do que uma moratória, esse procedimento implicaria enriquecimento sem causa do devedor, se a dívida viesse a ser paga por valor menor do que o devido.
O Estado Democrático de Direito não se compadece com esse tipo de pretensão. Não é por outros motivos que o artigo 37 da Constituição Federal elenca como princípio constitucional expresso o princípio da moralidade da Administração Pública, que prefiro ler como "princípio da honestidade da Administração Pública". Ora, onde está a honestidade em tal procedimento lesivo a direito alheio? Que eu possa abrir mão de algum direito, enquanto credor, vá la. Mas a ninguém é dado causar lesão a direito alheio. Principalmente quando esse alguém é devedor de valor sobre o qual não mais caiba discussão judicial.
Fala-se muito em respeito aos contratos, como requisito para a segurança jurídica dos negócios.
E para o próprio desenvolvimento de uma nação. Se assim é, como deve ser, não há espaço para um Estado que não cumpra seus próprios deveres e que não o faça no devido tempo.
Assim, a PEC em questão, como que avaliza o enriquecimento sem causa do Erário e estimula o calote, servindo de mau exemplo para todos quantos, neste País, se encontrem na condição de devedor. Será que, em situação oposta, o Fisco aceitaria tamanho despautério?
Em suma, o teor dessa PEC, por ofender esses e outros princípios constitucionais e de direito, é materialmente inconstitucional, pois a Constituição não admite a contrariedade aos princípios que ela mesma defende. Se aprovada, sua inconstitucionalidade material poderá ser suscitada em ações próprias, inclusive via ação direta de inconstitucionalidade.

domingo, fevereiro 12, 2006

Liberdade Cambial e Direito de Propriedade

LIBERDADE CAMBIAL E O DIREITO DE PROPRIEDADE

Plínio Gustavo Prado Garcia
www.pradogarcia.com.br

Tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº 32, de 2006, apresentado pelos senadores Renan Calheiros e Fernando Bezerra, com o objetivo de disciplinar as operações de câmbio e a movimentação de capital estrangeiro no País.

À primeira vista, parece que as operações de câmbio e a movimentação de capital estrangeiro no País já não sejam disciplinadas na legislação vigente.

No entanto, o que se verifica é uma legislação em descompasso com a realidade fática e com o regime constitucional ora em vigor no Brasil, legislação essa que, no tocante ao direito de propriedade sobre moedas estrangeiras por pessoas de direito privado (físicas ou jurídicas) acaba por ofender direitos e garantias constitucionalmente assegurados pela Constituição Federal de 1988.

Impõe-se, em primeiro lugar, estabelecer uma linha divisória entre o público e o privado. Evidentemente, esses dois elementos não se confundem. Negócios privados são os que se realizam entre partes particulares, ou mesmo em contextos de direito privado nos quais um ente público se apresente como ente privado. Fora disso, serão negócios de direito público, os que se realizem entre entes públicos ou entre Estados soberanos.

Os negócios de direito privado implicam operações que ocasionam mutações patrimoniais, cessões e transferências de direitos, venda e compra de bens ou prestações de serviços, permutas, etc. Essas operações podem realizar-se em âmbito local, nacional, ou mesmo em nível internacional.

Caso típico é o das exportações de matérias primas, produtos agrícolas, agro-industriais, produtos industrializados, bens ou mercadorias. Evidentemente, são operações geralmente entre empresas privadas, inobstante, em alguns casos, uma das partes possa revestir natureza de empresa pública. Mesmo aí, essas operações não deixam de ser operações comerciais de caráter privado.

Cabe aqui assinalar que o direito de propriedade e a livre iniciativa são a base do desenvolvimento nacional, e, por isso mesmo, têm a garantia da Constituição Federal.

O direito de propriedade, nesses casos, recai sobre a propriedade daquilo que será objeto da operação comercial de venda e compra mercantil, no mercado interno, ou deste para o exterior, ou mesmo, do exterior para o País. Nessas operações verifica-se a mutação de posições: quem antes era proprietário do bem vendido se torna titular do valor avençado na venda e compra. Assim, vai o bem e vem o dinheiro do seu pagamento. Esse dinheiro, essa moeda, é o componente do patrimônio do vendedor, que entrou no lugar do bem objeto da venda. Por conseguinte, é parcela do patrimônio privado e não propriedade governamental, de qualquer governo ou de qualquer Banco Central.

Surge agora a questão: a moeda estrangeira resultante dessas operações privadas passa a pertencer ao Estado, ao governo, ao Banco Central, tão só por ser moeda estrangeira? No vigente estado de direito, a resposta é, necessariamente, não!

Isso significa que o titular desses valores em moeda estrangeira tem todo o direito de manter em sua propriedade essas divisas. Não são divisas públicas, mas propriedade particular em moeda estrangeira. Significa, também, que apenas seu titular poderá decidir se manterá no exterior, a moeda estrangeira que lá tenha recebido ou de lá tenha de ser-lhe enviada. Significa, ademais, que cabe ao titular, e a ninguém mais, decidir se e quando converterá em moeda corrente nacional essas divisas estrangeiras, ou mesmo se as utilizará no exterior para pagar dívidas que lá tenha a pagar, ou para qualquer outra finalidade. Pondere-se que o direito de dispor do que é seu é do titular desse direito e não de terceiros. E, nesse passo, o Estado, o governo são terceiros sem direito de intromissão nessa esfera particular do direito de propriedade.

É interesse social que o direito de propriedade seja defendido a todo custo. O respeito ao direito de propriedade diz com a paz social. O inverso gera o caos e a desordem sociais.

Não quero aqui dizer que o câmbio de moedas não possa nem deva ser disciplinado pelas autoridades monetárias. Pelo Banco Central de país algum. Muito pelo contrário. Para isso, é preciso não confundir o direito de propriedade de moedas estrangeiras por particulares, com a operação cambial sempre que algum pagamento deva ser feito em moeda corrente de país cuja legislação não admita o adimplemento de obrigações em moeda estrangeira. É o caso do Brasil, em que o real é moeda de curso forçado e de poder liberatório. Daí que quem não disponha de moeda estrangeira no exterior, e, residindo ou estando estabelecido no País, ver-se-á na circunstância de contratar operação de câmbio, caso em que essa operação se realizará segundo as normas e regulamentos legais e constitucionais no âmbito da competência do Banco Central.

Logo, sob o presente ordenamento constitucional, não cabe ao poder público, ao Banco Central ou à lei, impor prazos ou penalidades para que ingressem no País divisas pertencentes a pessoas físicas ou jurídicas aqui residentes ou estabelecidas, que as tenham ou mantenham no exterior.

Assim, carece de constitucionalidade a exigência imposta nesse sentido aos exportadores, quando não tragam ao País suas divisas estrangeiras, ou quando, no exterior, as utilizem para as finalidades que bem entenderem, inclusive para pagamento, no exterior, a terceiros de quem sejam devedores.

O projeto de lei complementar em questão apenas reconhece o que já deveria ter ocorrido há muito tempo: a assincronia da vigente legislação restritiva à liberdade cambial e às compensações de dívidas em moeda estrangeira, com a nova ordem constitucional de 1988. Enquanto não seja ele aprovado, os interessados podem valer-se de recurso ao Poder Judiciário para prevenir ou afastar eventuais lesões de direito.