segunda-feira, agosto 11, 2014

Mitos da Função Social da Propriedade

MITOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

Plínio Gustavo Prado Garcia *

1. Conceito e alcance


Propriedade é palavra do tipo que todos sabem o que seja, mas que poucos conseguem definir ou conceituar. Dizer que propriedade é o que seja próprio de alguém é tomar o próprio substantivo e pretender defini-lo com um adjetivo dele derivado.

Mas essa conceituação é possível e até mesmo necessária, para a adequada compreensão de seu significado e de seu alcance. Inclusive e principalmente para seus efeitos no campo do Direito.

Diga-se, de inicio, que, para efeitos jurídicos, a idéia de propriedade é fruto de uma evolução social e mesmo mental do indivíduo e do seu meio social.

Nesse sentido, pode-se afirmar que, em certos estágios dessa evolução, a posse da coisa se confundia com o significado mesmo de coisa própria, inobstante ainda não houvesse uma separação entre a coisa e seu titular. Entre a posse e a propriedade.

É comum, ainda hoje, em comunidades primitivas a ausência da idéia de propriedade como algo distinto da coisa possuída, prevalecendo, ao invés, o sentido de utilidade que se faz ou que se dá à coisa como objeto de uso comum dos integrantes da comunidade. Aí nem se cogita da possibilidade de transmissão da propriedade, posto que coisa e propriedade se confundem na simples posse da coisa.

Todavia é possível conceituar propriedade como projeção material da personalidade. Desse modo, a propriedade se vincula a seu titular como algo que a ele pertence. É dele. É próprio. Vale dizer, o que dele é, de outro não é.

Como extensão material da própria personalidade, a propriedade traz consequências para o mundo jurídico. Isso resulta da necessidade de proteger o que é próprio. Pois a proteção do que é próprio busca assegurar a preservação da harmonia no grupo social.


2. Evolução histórica


Da idéia primária de posse, situação de fato, evoluiu-se, com o passar do tempo, para o "status" jurídico de propriedade.

Desse modo, propriedade é termo de conotação profundamente jurídica, como fruto do desenvolvimento da humanidade.

Em relação à terra, meros usuários passaram, por meio de conquistas militares, na condição de conquistadores, a ter o poder de exigir dos conquistados pagamento pelo uso das terras deles arrebatadas.

Independentemente da denominação específica que se dê aos vencedores, aos conquistadores, o fato é que, a partir de uma situação de força, passou-se, com o tempo, a uma relação jurídica entre o senhorio e o destituído da propriedade imobiliária.

Surgiram as cidades-estado e a necessidade de defender a cidade-estado contra as incursões de seus inimigos. Essa necessidade de defesa implicou a necessidade de obtenção de recursos materiais, de conteúdo econômico-financeiro, para a aquisição de armamentos e custeio do pessoal encarregado da sua defesa, os exércitos.

A cobrança de contribuições materiais exigidas dos dominados pelo poder dominante, passou a ser o meio normal de subvenção de seus exércitos e de garantia dos poderosos.

Até então, essas contribuições compulsórias não tinham por objetivo, a promoção do bem comum. A ausência de contribuição era conduta punida com penas de caráter pessoal, de simples prisão e até mesmo de condenação à morte.

Assim, outrora, os conquistados e os escravos asseguravam, com suas contribuições materiais e com seu trabalho pessoal a manutenção do sistema controlado pelos conquistadores.

Na Inglaterra do Século XIII, sob o feudalismo, o conflito de interesses entre o rei, o clero, a nobreza e a burguesia acabou provocando a rebelião dos senhores feudais contra a centralização monárquica, como já acontecia em toda a Europa. Disso resultou, em 1215, a imposição ao rei João Sem Terra, da Magna Carta, reafirmando os costumes feudais. Desde então, fica proibida a instituição de impostos sem a autorização dos senhores feudais e da Igreja. Ademais, formou-se um Grande Conselho, em que se reuniriam o clero e a nobreza, quando convocado para decisões importantes. Paralelamente, a burguesia conquista facilidades no comércio.

A Magna Carta constitui o embrião do exercício de controle sobre o poder real, no estabelecer que "nenhum homem livre será preso e terá confiscada sua terra (...) salvo pelo julgamento dos pares ou pela lei do reino." Definem-se, assim, as bases da liberdade individual, ao menos para os não-escravos.

O Brasil colônia recebeu os influxos e influências da Coroa portuguesa, desde o descobrimento, principalmente como as sesmarias e as capitanias hereditárias. A aquisição da propriedade imobiliária começou, pois, como concessão real, com os ônus inerentes ao seu desenvolvimento em um país em formação. Do mesmo modo, a prática de certas profissões ou atividades comerciais ficava a depender do beneplácito do Rei. Principalmente o comércio internacional e a imprensa, beneficiados pelas contingências históricas da época, que, em 1.806, ao Brasil trouxeram D. João VI e a corte lusitana.

Das concessões de terras pela Matriz a seus eleitos, viabilizou-se, com o passar do tempo, a aquisição derivada, mediante o desmembramento das glebas entre os adquirentes.

A posse na Roma Antiga já era protegida juridicamente por meios dos interditos possessórios. Mais tarde, tornou-se meio primário de aquisição da propriedade, quando satisfeitos pelo possuidor os requisitos legais para esse reconhecimento, passando o possuidor a ter a qualidade de proprietário. Titular de um direito transferível a seus herdeiros ou sucessores, mediante transmissão "causa mortis" ou "inter vivos", a título gratuito ou a título oneroso.


3. Restrições ao Direito de Propriedade


As restrições ao direito de propriedade têm raízes geralmente políticas. Em dado momento histórico, na concepção marxista, sofre os efeitos da ideologia, e, ultimamente, está sob o impacto do ambientalismo.

Na Constituição Brasileira de 1988, estavam os constituintes ainda sob a influência das correntes socialistas, cujas idéias e ideais vieram a limitar os influxos liberais registrados nas anteriores Constituições brasileiras e nos dispositivos do Código Civil, pertinentes ao direito de propriedade.

Na visão socialista, a propriedade privada deve ser abolida, dando-se lugar à propriedade coletiva. Pretende-se transferir a propriedade individual, de cada um, para um ente jurídico denominado Estado, que, dominado pelo grupo detentor do poder, exerceria, em tese, o controle da propriedade coletiva em favor da coletividade.

Nesse sentido, o socialismo representa uma concentração da propriedade nas mãos de uns poucos, o poder dominante, passando os antigos proprietários e demais usuários da propriedade à antiga condição de meros servos da gleba. Devem usar a propriedade aparentemente no interesse de todos, enquanto tudo fazem para, com ela e mediante seu uso, manterem o estamento dos governantes.

Na realidade, a utilização da terra passa a ser meio de manutenção do poder dominante. Ninguém senão o Estado (personalizado nos detentores do poder) haverá de ser proprietário, pois todos os demais serão meros usuários e ocupantes da propriedade estatal. Exatamente porque "res publica" é "res nullius”, a propriedade coletiva acaba por significar propriedade de ninguém. Salvo daqueles que a controlam, supostamente, e nome dos seus usuários.

Ora, sendo a propriedade uma projeção material da personalidade, impõe-se jamais abolir a propriedade privada. No entanto, isso não impede que o Estado, enquanto ente de direito, capaz de contrair obrigações, também possa ter suas propriedades.

A abolição da propriedade privada equivale a extirpar um elemento integrante da própria personalidade de seu titular.

Direito de propriedade é direito de ter como seu aquilo que seu é. É direito de usar, fruir, gozar e dispor do que é seu, sem interferências de terceiros. Ninguém tem o direito de usar, fruir, gozar e dispor daquilo que a outrem pertença, salvo quando assim autorizado por seu titular. Ou quando o titular, ausente, não zele pelo que é seu. Fato ensejador até mesmo de usucapião.


4. Função social da propriedade


Não se pode confundir direito com abuso de direito. O direito se protege, o abuso se condena.

Exatamente por isso, entra em cena o que na vigente Constituição Federal de 1988 ficou denominado e caracterizado como “função social da propriedade.”

Todavia, pretendemos aqui demonstrar que esse conceito de "função social" está sendo erroneamente legislado, interpretado e aplicado em detrimento não só do proprietário, mas, principalmente, do próprio desenvolvimento nacional.

Na verdade, por força de influxos ideológicos e de suposta defesa ambiental, interpreta-se a Constituição Federal e se adotam medidas legislativas que acabam por desestimular o próprio desenvolvimento rural e urbano do País.

O influxo ideológico se materializa na punição do latifúndio e dos imóveis de maiores valores, rurais e urbanos, pela imposição de tributação mais elevada e de outras tantas obrigações que se exigem do proprietário, sob pena, inclusive, de desapropriação.

O fato é que o latifúndio não pode ser visto como um mal em si mesmo, tanto quanto não se pode considerar um bem a existência de um agrupamento de minifúndios improdutivos.

Se assim é, forçoso será concluir que a função social da propriedade está mais no que se faz ou se deixa de fazer na propriedade ou com a propriedade, do que em ter-se ou não se ter a propriedade privada.

Por isso mesmo, consideramos que a maior função social da propriedade se encontra no respeito ao próprio direito de propriedade. Sem o respeito ao direito de propriedade, se desrespeita a projeção material da personalidade.

O restante é conseqüência disso. É não só o que fazer com a propriedade, mas, também, o que com ela não se deve fazer. A primeira dessas situações tem um sentido afirmativo. De ação. A segunda, implica um dever de abstenção. Um não-fazer.

Verifica-se, assim, que afastada desse contexto de fazer ou não fazer, a função social da propriedade torna-se um mito, um agrupamento de palavras sem significado prático algum.

Todavia, enquanto signifique impor ao titular da propriedade obrigações de fazer, é necessário tomar uma série de cuidados para que essas obrigações legais ou contratuais não desbordem os limites da razoabilidade e não descambem para o confisco ou para a perda da própria propriedade.

Não me parece adequado nem razoável exigir-se do proprietário atos afirmativos, traduzidos em obrigações de fazer, no interesse social, aquilo que, para ser feito, dele exija esforço pessoal ou a assunção de compromissos e obrigações financeiras de "interesse social", que a ele, proprietário, nenhum benefício direto possa resultar. Ou que também não seja de seu interesse pessoal.

Nem me parece correto admitir-se a omissão do proprietário, quando, no interesse social, deva abster-se de praticar atos capazes de prejudicar seus vizinhos ou o próprio ambiente, tais como ocasionar poluição da água, do solo, do ar, lesar a flora e a fauna.

Interesse social e interesse pessoal nem sempre têm de ser situações conflitantes. O interesse pessoal deve coincidir com o interesse social, mas a prevalência do interesse social sobre o interesse pessoal não pode produzir lesão ao direito individual do proprietário.

Isso significa que a exigência de cumprimento da função social da propriedade jamais deve chegar ao ponto de transformar o proprietário em servo da comunidade ou em servo da gleba.

Exigir do proprietário a prática de atos afirmativos para a suposta satisfação de interesses sociais ou comunitários é usurpar o direito de propriedade, transformando o direito de propriedade em ônus da propriedade.

A expressão “função social da propriedade” nada diz por si mesma, em vista da ausência de conceituação e definição de seus termos.

Dizer que cumpre a “função social da propriedade” quem a utilize sem prejuízo da comunidade, sem lesar a flora, a fauna, sem poluir o solo, as águas e o ar - significa dizer que esse proprietário não ultrapassa os limites do permissível. Mas, dizer que a “função social da propriedade” implique obrigar o proprietário a ser produtivo, a tomar sua propriedade produtiva, a alcançar níveis de eficiência e de produtividade que venham a ser fixados em lei ou em qualquer norma regulamentar do Poder Público - significa, na verdade, transformar o proprietário em funcionário público, a serviço da coletividade, sem a contrapartida da remuneração. Pior ainda, é que, além de não receber qualquer amparo, ajuda ou auxilio oficiais para que venha a cumprir esse "dever", sobre ele, proprietário, paira a espada de Dámocles da desapropriação por “descumprimento da função social da propriedade.”

Ora, o proprietário rural ou urbano não são instrumentos de ação do Poder Público, a serviço da Administração Pública nem da comunidade. São eles, proprietários, pessoas físicas ou jurídicas atuando no campo da iniciativa privada, com direitos e responsabilidades próprios. São pessoas de todos os níveis e classes sociais, componentes da comunidade, do Estado e da Nação, que não podem estar a serviço gratuito uns dos outros e muito menos a serviço gratuito dos Poderes constituídos.

Exigir que o proprietário rural ou urbano venha a cumprir, com atos afirmativos, supostas obrigações de interesse social, no contexto da indefinida função social da propriedade, é transformar, repita-se, o direito de propriedade em ônus da propriedade.

A vigente Constituição Federal garante o direito de propriedade, no seu artigo 170, II, ao mesmo tempo em que no inciso III se reporta à função social da propriedade.

Por outro lado, em razão do princípio da legalidade assegurado no inciso II do seu artigo 5º, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. É o princípio da legalidade.

Ocorre, no entanto, que esse princípio se submete ao princípio da constitucionalidade da lei. Em outras palavras, não basta ter lei. Mister que a lei respeite os direitos individuais e os comandos constitucionais.


4.1. - Desapropriação para fins de reforma agrária


Se, de um lado, a Constituição Federal assegura no artigo 170, II, o direito de propriedade, a questão que se põe é: em que situações e sob que condições se poderá perder a propriedade, por ato do Estado? Aparentemente a resposta estaria no seu artigo 184, combinado com o seu artigo 186, no que tange à propriedade rural.

Assim, é competência exclusiva da União Federal desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social.

Inversamente, tem-se por cumprida a função social quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo “critérios e graus de exigência estabelecidos em lei”, aos requisitos dos incisos I a IV do mencionado artigo 186. Esses requisitos são: I - aproveitamento racional e adequado da propriedade rural; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho, e IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Ora, há patente incongruência entre esses requisitos de atendimento da “função social da propriedade” e a preservação do próprio direito de propriedade, enquanto relacionado com a propriedade rural.

Não se pode admitir uma interpretação isolada de dispositivos constitucionais e tampouco uma interpretação meramente literal de suas disposições.

Desse modo, o bem da vida que, no âmbito do direito de propriedade, a Constituição garante é a propriedade e não a função social da propriedade. Tanto isso é verdade que não se pode falar em função social da propriedade se, antes, não se admitir a existência de propriedade e dos direitos que decorrem da qualidade de ser proprietário.

Ora, se assim é, como deve ser, impõe-se avaliar a razoabilidade dos “critérios e graus de exigência” que deva a lei estabelecer por ter-se por cumprida a função social da propriedade. E mais do que isso. Na medida em que se exige do proprietário rural a satisfação desses requisitos, mediante obrigações de fazer, é curial que a ele não se poderá imputar omissão alguma, caso não lhe sejam propiciados pelo Poder Público, no contexto de uma política agrícola, os meios necessários à consecução do objetivo visados no âmbito da própria política agrícola e fundiária do país.

Ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa em benefício de terceiros ou da coletividade, sem a contrapartida do fornecimento de meios adequados para a consecução do fim visado.

Parece-me incongruente, assim, a própria sistemática de desapropriar “por interesse social para fins de reforma agrária” o imóvel rural “que não esteja cumprindo sua função social”, pelo menos em duas circunstâncias: (1) quando não hajam sido propiciados ao proprietário os meios necessários ao aproveitamento racional e adequado da propriedade rural, por ausência ou insuficiência de instrumentos creditícios e fiscais, por inexistência de preços compatíveis com os custos de produção e por falta de garantia de comercialização. Isso sem falar nos demais requisitos do artigo 187, no contexto de uma política agrícola exigida pela Constituição Federal; (2) quando o proprietário haja formalmente solicitado esse apoio oficial.

Assim, interpretando-se sistematicamente a Constituição Federal, nenhum imóvel rural poderá ser desapropriado para fins de reforma agrária ou para qualquer outro fim, se a desapropriação vier fundamentada em "descumprimento de função social" pelo proprietário, quando antes, o Poder Público haja negado a esse mesmo proprietário qualquer dos meios necessários à efetivação da política agrícola nessa mesma propriedade rural.

Ora, do mesmo modo que se exige o atendimento “simultâneo” dos requisitos do artigo 186 da Constituição Federal, do proprietário em relação a sua propriedade rural, não se poderá dispensar o Poder Público do “simultâneo” atendimento dos requisitos do subsequente artigo, o 187, inerentes à política agrícola.

Se assim não se interpretar a Constituição, o intérprete estará quebrando o equilíbrio que deve ser mantido entre os princípios constitucionais, e dando prevalência à “função social da propriedade” como meio de negação e denegação do próprio direito de propriedade, sem o qual nem se poderá falar em “função social da propriedade”. Na realidade, a “função social da propriedade” é tal acessório que segue o principal. Sem este, não poderá haver aquele.

Ademais, parece-me estultícia dar preeminência à desapropriação para fins de reforma agrária, quando, ao invés, dever-se-ia buscar estimular a produtividade agrícola pela via da parceria entre o proprietário e o trabalhador rural, no próprio quadro da política agrícola propugnada no artigo 187 da Constituição.

Tirar a terra de quem a tenha, usando os parcos recursos públicos para pagamentos de desapropriações rurais, e, em seguida, dar a terra a quem ademais não tenha recursos para torná-Ia produtiva, nos moldes exigidos pelo artigo 186 da Constituição Federal, é tanto pior do que não fazer a desapropriação e, assim, usar esses recursos para o desenvolvimento agrícola.

Por isso mesmo, a exigência de satisfação da “função social da propriedade rural” acaba sendo desastroso mito, que só contribui para a instabilidade do próprio desenvolvimento agropecuário do país e para o desestímulo da produção e de novos investimentos no campo.


4.2. - Quebra dos princípios da igualdade e da razoabilidade.


Ainda que a Constituição Federal, no “caput” do artigo 186, atribua ao legislador a competência para editar lei dispondo sobre os critérios e graus de exigência pertinentes ao cumprimento da função social da propriedade rural, o fato é que a legislação superveniente sobre o tema acaba por violentar ao menos dois princípios constitucionais: o da igualdade e o da razoabilidade.

Ora, como dito acima, é preciso distinguir as obrigações de fazer, das obrigações de não fazer.

Exigir do proprietário rural que torne sua propriedade produtiva é exigir-Ihe obrigação de fazer. Quem assim exige, os meios tem de dar. A exigência, por si só, já torna o direito em ônus da propriedade. O proprietário passa a servir o Poder público, sem a contrapartida desse serviço.

No entanto, lei nenhuma vem a exigir do funcionário público o atendimento de níveis de eficiência e de produtividade, que deles podem e devem ser exigidos, especialmente porque são remunerados para o cumprimento dessas funções e desses deveres. Também os membros dos Poderes Executivo e Legislativo, e os da administração indireta deveriam prestar conta a quem os paga - a coletividade e cada um dos cidadãos - pois estes são os “contribuintes”, dos quais se arrecadam os tributos para a manutenção da “máquina” estatal e dos serviços públicos em geral.

Do mesmo modo, não cabe transformar o proprietário rural em serviçal da gleba, fonte compulsória de produção e gerador de tributos, sem recursos, e, sobre ele, ainda impor a penalidade de desapropriação “para fins de reforma agrária.”

Como se vê, a legislação infraconstitucional sobre desapropriação para fins de reforma agrária, no contexto da “função social da propriedade” fere os princípios da igualdade e da razoabilidade.

Ademais, não se vê motivo plausível para infligir ao proprietário rural esse tratamento discriminatório que, felizmente, não se aplica nem pode se aplicar aos demais setores produtivos da sociedade. Caso contrário, teríamos o Estado não só como “dono da gleba”, mas, também, dos demais meios de produção. E os “donos do Estado” usufruindo do labor de seus súditos e lacaios.


4.3. A propriedade urbana


Outro equivoco é trazer a ideologia para o terreno da propriedade imobiliária urbana, confundindo “função social da propriedade” com mecanismo de arrecadação tributária.

É isso o que se tem verificado no constante conflito entre proprietários de imóveis urbanos e as respectivas municipalidades, no campo do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana.


Ora, esse imposto, tanto quanto o ITR (Imposto Territorial Rural, da competência da União Federal) não é imposto pessoal. É imposto incidente sobre a coisa, a “res”, o imóvel. Assim, na sua tributação jamais se pode adotar a sistemática de progressividade de alíquotas, como ocorre, por exemplo, no caso do Imposto de Renda da Pessoa Física. Mormente porque dois contribuintes com a mesma capacidade contributiva, como no caso em que a soma dos valores venais de seus imóveis no mesmo Município se iguale, devem ser igual e não desigualmente tributados nessas suas propriedades imobiliárias. Considerando-se, para fins de base de cálculo, apenas o valor venal da propriedade, sobre o qual se deve aplicar a alíquota correspondente, sem progressividade, respeitar-se-á a isonomia tributária do artigo 150, II da Constituição Federal.

Por isso mesmo, esses impostos só podem ser aplicados enquanto impostos e tão só no campo da fiscalidade. Qualquer outro fator extrafiscal não poderá tomar por pressuposto os mesmos pressupostos fáticos e legais da imposição tributária.

Afirma-se, na doutrina, que haveria dois tipos de imposição: a tributária e a parafiscal. É que, assim, seria possível uma “função social” extra-fiscal e uma “função social” no campo fiscal.

E mais, que, em ambos os casos, a aplicação dessa política de função social da propriedade urbana se faria mediante a aplicação de alíquotas progressivas.

Desde o início, nas inúmeras ações já por mim patrocinadas, contra a progressividade de alíquotas ou mesmo contra a imposição de alíquotas diferenciadas, sempre combati leis municipais que adotassem ou ainda adotem esses procedimentos discriminatórios.

Ora, me parece evidente que esse imposto, enquanto imposto, não se presta senão para fins de arrecadação, como imposto. Jamais como exação parafiscal.

Isso se explica porque a parafiscalidade tem outros motivos e outros objetivos, que não se confundem com o mero direito do Município de arrecadar tributos.

Sempre que os motivos justificadores de qualquer exação estejam desvinculados das causas motivadoras de uma incidência tributária, ter-se-á uma exação não fiscal. Cuidar-se-á de exação parafiscal.

Em outras palavras, a exação será dirigida a provocar uma determinada conduta do sujeito passivo: um fazer ou um não-fazer. Assim, o descumprimento dessa obrigação de fazer - ou da obrigação de não-fazer, quando o que não deva ser feito, feito é pelo sujeito passivo - terá como conseqüência, uma sanção administrativa cominada na lei.

Por isso mesmo, não cabe estabelecer uma dicotomia na função social da propriedade urbana, que grande número de doutrinadores adota, quando afirmam a coexistência, sob a vigente Constituição Federal, no capítulo da Política Urbana, de uma função social fiscal e outra, parafiscal.

Não, toda exigência de cumprimento de função social implicará o atendimento de um fim vinculado à causa que lhe dê origem. Ao próprio motivo de sua exigência. A uma determinada causa, deverá seguir um certo resultado.

Ora, a exigência de IPTU independe de uma causa, pois exige apenas uma circunstância: a existência de propriedade imobiliária urbana, que, por ser urbana, se insere no âmbito da competência tributária do Município, por eleição constitucional.

Já, a realização da função social da propriedade parte de um motivo que se vincula ao próprio objetivo visado. O motivo poderá ser incentivar a edificação, reduzir a sub-utilização, dar adequado aproveitamento ao imóvel, e o objetivo visado obter o resultado consistente na edificação que se promova, na sub-utilização que se reduza e no aproveitamento que se faça adequado.

Mesmo aqui, o que se afirmou acima, a respeito da desapropriação para fins de reforma agrária, por falta de cumprimento da função social da propriedade, pode ser afirmado quanto às exigências relacionadas com o atendimento da função social da propriedade urbana.

Ademais, basta ver que o §4º do artigo 182 da Constituição Federal apenas faculta ao Poder Público municipal, desde que mediante lei específica para área incluída no plano diretor, e consoante os termos de lei federal, impor exigências ao proprietário do solo urbano não edificado, sub-utilizado ou não utilizado, para promover seu adequado aproveitamento.

As conseqüências dessa insubmissão do proprietário são as cominações sucessivas a que se referem seus três incisos: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbano progressivo no tempo, e III- desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

É evidente, portanto, que o descumprimento da função social da propriedade urbana acarreta sanções parafiscais. E não a adoção de alíquotas diferenciadas ou de alíquotas crescentes do IPTU.

Essas sanções não deixam de ter o caráter parafiscal nem mesmo diante do disposto no §1° do artigo 156 da constituição Federal, onde se afirma que o IPTU poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade.

Não se pode dizer, com razoabilidade, existirem duas categorias de função social da propriedade.

Por isso mesmo, esse parágrafo deve ser lido como autorizando a progressividade do imposto (e não a progressividade de alíquotas do imposto). Ademais, como ninguém pode ser punido sem antes ter sido notificado da prática de qualquer irregularidade, é crucial que nenhum contribuinte do IPTU poderá ser adrede compelido a pagar IPTU progressivo, sem que antes lhe tenha sido dada ciência da obrigação que deva ou que devesse satisfazer, ao olhos da lei e da respectiva Municipalidade.

Consequentemente, em respeito ao direito de ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, nenhum contribuinte poderá ser punido fiscal ou extrafiscalmente, por infração a ele não notificada.

Ora, por isso mesmo, o lançamento do IPTU sempre resulta de lei. O lançamento é anual. Para ser progressivo, o imposto - no contexto de descumprimento da função social da propriedade - deverá ser aplicado consoante previsão legal e casuisticamente, caso a caso, como acréscimo ao imposto básico lançado. Mas desde que a obrigação antes notificada, deixe de ser cumprida no tempo previsto em lei. E isso denota que a sanção se aplica sob a forma de multa. E não de alíquotas progressivas de IPTU. O que se coaduna com o próprio inciso II do § 4° do artigo 186 da constituição Federal, quando se reporta a IPTU progressivo no tempo.

5.- Conclusão

O Estado que garante o direito de propriedade não pode inviabilizar essa mesma garantia, impondo ao proprietário obrigações de fazer, sem dar-lhe os meios e os recursos necessários à satisfação dessa exigência.

A propriedade é extensão ou projeção material da própria personalidade. Protege-se a propriedade porque o direito de propriedade tem amplitude social, a partir do individual. É o conjunto de indivíduos que, com sua propriedade individual, forma a comunidade social.

Não se pode exigir do proprietário rural o cumprimento de metas de produtividade e de eficiência, a ponto de ver-se a propriedade privada transformada em propriedade estatal.

Tem o proprietário rural justa causa para evitar a desapropriação para fins de reforma agrária, fundada no argumento de descumprimento da função social da propriedade, bastando, para tanto, comprovar o descumprimento, pelos órgãos oficiais competentes, de sua obrigação de propiciar ao proprietário os meios e recursos necessários à consecução desse objetivo legal.

Na contrapartida do dever de cumprir a função social da propriedade, está o dever governamental de apoiar a agricultura e a pecuária, a produção, o armazenamento, a distribuição e a comercialização da produção agropecuária. E também a garantia de preços mínimos, que, ao menos, assegurem a continuidade da produção.

No terreno urbano, a função social da propriedade estará, também, sempre objetivando obrigação de não-fazer ou obrigação de fazer. Exigir-se do proprietário urbano obrigação de fazer, que implique o adequado aproveitamento do solo urbano, nele edificando, dando a ele utilização ou reduzindo o grau de sub-utilização - apesar do disposto no §4° do art. 182 da Constituição Federal -- implica outorgar ao proprietário o direito de exigir do Poder Público meios de financiamento adequados à consecução desses objetivos. Isso porque se tais previsões existem a favor do proprietário rural, no âmbito da política agrícola (art. 187 da constituição Federal), não será licito nem prudente imaginar houvesse a Carta Magna vigente pretendido estabelecer tratamento mais gravoso ou menos favorecido ao proprietário urbano.

Ademais, a desapropriação por interesse público é direito do Poder Público municipal, que pode ser exercido fora do contexto da função social da propriedade, ao passo que a desapropriação fundada em descumprimento de função social da propriedade urbana haverá de ser a última das etapas previstas nos incisos do referido §4° do artigo 182.

Assim, mesmo quando no inciso I desse parágrafo, se faz referência a parcelamento ou edificação compulsórios, é de se pressupor que o atendimento dessa exigência venha acompanhado dos meios e dos recursos financeiros necessários para a sua realização. Sob o aspecto fático, de que adianta a municipalidade determinar o parcelamento ou a edificação compulsórios no solo urbano, se o proprietário carece de recursos materiais e financeiros para promover esse parcelamento ou essa edificação? Além disso, que grau de parcelamento e que nível de edificação se exigirá dele, nesse contexto? Vê-se que fica aberto o campo para a discricionariedade e para o arbítrio.

Uma coisa é o proprietário urbano ser notificado para cumprir a dita função social da propriedade, nada fazendo. Aí, sujeitar-se-á às cominações legais, que devem vir sob a forma de sanção administrativa, isto é, de multa progressiva (e não de alíquota progressiva), com percentual crescente, a cada ano, sobre o montante do imposto básico lançado. É, por exemplo, o caso da falta de muros em terreno urbano. Ou de calçadas. Admissível nessas hipóteses que, na omissão do proprietário, venha a municipalidade a fazê-Io ou a mandar fazê-Io às custas do proprietário, não será razoável, de outra parte, que obrigações de maior monta, como a de parcelamento ou de edificações possam ser exigidas do proprietário ou à sua revelia realizadas, sem que antes lhe hajam sido oferecidos e propiciados os meios e recursos para sua realização.

A outra é, diante de tal notificação, vir a manifestar sua intenção de atendimento e a reclamar do Poder Público o fornecimento dos meios e dos recursos para o satisfatório preenchimento da exigência legal ou administrativa. Neste caso, passará o proprietário, da condição de devedor de uma obrigação, a titular do direito de reclamar do Poder Público esses meios e recursos necessários à sua implementação.

Caso contrário, estar-se-á, mais uma vez, transformando o direito de propriedade em ônus da propriedade. E o proprietário rural em servo da gleba. O Estado em proprietário único, e cada antigo proprietário em simples possuidor ou mero usuário. Aí, a propriedade, ao invés de ser projeção material da personalidade de seu titular, passará a ser, nada mais, nada menos do que a exteriorização do poder estatal.
__________

*Plínio Gustavo Prado Garcia é advogado e sócio-fundador de Prado Garcia Advogados , em São Paulo, formado pela USP em 1962, com mestrado nos Estados Unidos pela George Washington University (1972), especialista em Direito Tributário pelo CEEU (1984), tendo sido professor de Direito Civil e Tributário, nas Faculdades FMU e São Judas Tadeu. É autor de inúmeros trabalhos jurídicos publicados em livros e periódicos do País, entre eles a Revista dos Tribunais. É membro da Academia Brasileira de Direito Tributário; do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, entre outros.

PRADO GARCIA - ADVOGADOS
Lawyers and Consultants
Rua Tabatinguera, 140, 10º, cj. 1.012
CEP 01020-901 - São Paulo - Capital
Fone (011) 3242.8799 Fax (011) 3107.8934
E-mail
http://www.pradogarcia.com.br