segunda-feira, maio 23, 2022

Infalibilidade do sistema do voto digital?





A ciência do direito se fundamenta em princípios gerais, nos costumes e nas leis que a regem.

Diferentemente da teologia, não aceita dogmas.

Assim, no campo teológico, dogma é o ponto fundamental de uma doutrina religiosa, apresentado como certo e indiscutível. Como o dogma da santíssima trindade.

Entre os princípios de direito, se destaca o da verdade material. A veracidade do verdadeiro. Todavia, esse (como outros princípios de direito), admite prova em contrário. Se assim não fosse, teríamos um dogma jurídico. O que um seria absurdo em si mesmo.

No âmbito da ciência do direito, temos a presunção da verdade, por não ser possível sua prevalência diante de provas em contrário.

Isso nos leva a uma análise do sistema eleitoral brasileiro do voto digital.

Nesse particular, constatamos a visão de ministros do STF integrantes do Tribunal Superior Eleitoral, que não admitem discussão alguma que ponha em dúvida esse sistema de voto digital.

Seu posicionamento, nesse particular, traz para o direito eleitoral o dogma da infalibilidade.

Máquinas eletrônicas de votação não podem ser equiparadas a urnas eletrônicas.

No direito eleitoral, urna é o receptáculo para recolher os votos dos eleitores, permitindo-se, assim, sua apuração.

Apuração, do verbo apurar, significa a possibilidade de contagem dos votos nelas depositados.

O sistema do voto digital não permite sua apuração. Não há como contar cada voto ali digitado. Limita-se à totalização, à somatória dos votos digitados em cada máquina de votação.

A garantia constitucional do sigilo do voto termina assim que votamos. Nesse sentido, ninguém pode ser obrigado a informar a favor de quem tenha depositado seu voto.

Mas e por outro lado, a apuração dos votos, como ato administrativo, deve respeitar o princípio e a garantia constitucionais da publicidade. Desse modo, sua contagem deve ser pública.

No sistema do voto digital não há como realizar-se a apuração, a contagem de cada voto. Isso porque impulsos elétricos ou eletrônicos não são passíveis de contagem. Apenas de totalização.

Assim, não há meio possível de apurar e contar publicamente esses votos digitais.

Exatamente por isso, desde a implantação desse sistema eleitoral no País, a veracidade das totalizações tem sido calcada no dogma da infalibilidade.

Como a ciência do direito não aceita dogmas, devendo prevalecer a contagem pública dos votos, chegamos à inexorável conclusão de que todos os candidatos eleitos desde a implantação do voto digital no País o foram ao arrepio da exigência da apuração pública desses mesmos votos.

Evidentemente, o que passou desde então não poderá ser alterado.

Em suma, os ministros do Supremo integrantes também do TSE ofendem a Constituição ao darem ao sistema vigente de voto digital o caráter de dogma, de verdade absoluta, dotado de infalibilidade.

Assim, para sanar esse vício, basta acoplar ao voto digital o comprovante físico de cada voto. Esse voto seria automaticamente depositado na respectiva urna, depois de confirmado pelo respectivo eleitor. Não levaria consigo cédula alguma. Nada haverá de errado se os votos totalizados corresponderem ao total de seu comprovante depositado automaticamente em cada urna eleitoral. Na divergência, estes prevalecerão sobre os votos digitais.

sexta-feira, maio 20, 2022

Bolsonaro, Pacheco e o direito de petição

A todos é assegurado constitucionalmente o direito de petição junto aos Poderes da República. Na contrapartida, a esse direito corresponde o dever funcional de despachar nossos pedidos. Deferindo-os ou os indeferindo. 

No caso de indeferimento ou de deferimento apenas parcial, parcial, caberá recurso ao órgão recursal. E, assim, até a última instância julgadora. 

Incorrerá em crime de responsabilidade ou mesmo de prevaricação ou ainda de impeachment a autoridade administrativa, o detentor de mandato público ou mesmo o juiz togado que deixar de decidir sobre a petição que chegue às suas mãos.

É sabido que a Constituição atribui ao Senado Federal a competência para iniciar e julgar pedidos de impeachment contra o Presidente da República ou contra ministros do Supremo Tribunal Federal. 

Protocolado no Senado quaisquer desses pedidos, caberá à sua Presidência despachar o respectivo pedido.

Se o presidente do Senado entender por indeferir o pedido, ou nada fizer diante dele, não lhe caberá simplesmente arquivar os respectivos autos do processo administrativo.

Passado o prazo de decisão ou notificado o requerente do indeferimento de sua petição, terá esse requerente o direito constitucional e legal de recorrer, nesse caso, à Mesa do Senado.

Se ali, seu recurso vier a ser acolhido ou mesmo não acolhido, passará ao Plenário do Senado a votação do pedido de impeachment. 

Em suma, não se pode alegar nem aceitar que o presidente do Senado tenha o poder de, simplesmente, arquivar qualquer petição (e, principalmente uma de pedido de impeachment) que chegue ao seu gabinete. 

Prevalece em todos os casos o direito constitucional e legal de recurso do requerente à autoridade ou ao órgão competente para apreciar e decidir sobre seu pedido formalizado na sua petição. 

Ninguém peticiona para ver sua petição cair no vazio. 

No caso do pedido formulado pelo presidente Bolsonaro ao presidente do Senado de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, a atitude de Rodrigo Pacheco ofende essas garantias constitucionais e legais do requerente, ao simplesmente arquivar esse processo administrativo.

terça-feira, maio 17, 2022

Jantar conspiratório?

Como noticiado, a senadora tocantinense Kátia Abreu (PP) recebeu para um jantar na quarta-feira, 11, em Brasília, os senadores Renan Calheiros (MDB-AL), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Marcelo Castro (MDB-PI), Jaques Wagner (PT-BA), Tasso Jereissati (PSDB-CE). Desse jantar também participaram os ministros do STF Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski. Não faltou também a presença do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

                O motivo desse encontro seria se defenderem contra “o projeto de poder de Bolsonaro”, proteger o Supremo Tribunal Federal, não o deixando isolado,  garantir a defesa do sistema eleitoral e combater o “terror institucional”.

                Não vejo nenhum problema se apenas os senadores mencionados tivessem participado desse jantar, sem a presença do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e dos ministros Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandowski.

                Ao que tudo indica, é de manifesta inconstitucionalidade e ilegalidade esse encontro de legisladores e membros do Supremo Tribunal Federal.

                Parece uma reunião de conspiradores contra o atual ocupante da Presidência de Republica.

                Ministros do Supremo Tribunal Federal estão jungidos ao dever de falar apenas nos autos dos processos que ali cheguem. Estão constitucionalmente proibidos de participar de reuniões políticas. E de interferir nos outros dois Poderes da República.

                Essa sua participação nesse jantar, os torna constitucionalmente impedidos de julgar todo e qualquer processo que se instaure contra o Presidente da República. E se nisso insistirem, expõem-se a processo de impeachment junto ao Senado da República.

                Não menos grave, é a participação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, nesse encontro.

                Pacheco se torna, assim, manifestamente, um adversário do Presidente da República, quando se omite no seu dever de despachar pedidos de impeachment  de qualquer ministro do Supremo Tribunal Federal.

                A todos é assegurado pela Constituição Federal o direito de petição. Um pedido de impeachment se faz por meio de petição dirigida ao Presidente do Senado. A toda petição corresponde o dever constitucional e legal de decisão do destinatário. Não pode se omitir no dever de despachá-la, ainda que o seja para indeferi-la. Mas a Constituição também nos garante o direito de recorrer de eventual indeferimento do pedido formulado nessa petição. E, nesse caso, havendo omissão do Presidente do Senado, ao simplesmente arquivar a petição ou mesmo a indeferi-la, o recurso cabível deverá ser direcionado à Mesa do Senado Federal. Que não se resume nem se limita à pessoa do seu presidente.

                Rodrigo Pacheco corre o risco de processo político no âmbito do Senado Federal.

                Não defende a democracia quem, em quaisquer dos Poderes da República, desrespeita nossos direitos e garantias  constitucionais, a começar pela liberdade de expressão e de opinião.


sábado, maio 14, 2022

Perda do direito dos índios às suas terras e o marco temporal do art. 231 da CF

 

                      

                São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 

                    É o que dispõe o artigo 231 da Constituição Federal.

            Chama nossa atenção o trecho “terras que tradicionalmente ocupam”. E não que tradicionalmente ocuparam. Ou que venham a ocupar. Que “ocupem”.

            O verbo ocupar se apresenta ali no tempo presente. Nem ao passado, nem ao futuro. Presente, portanto, à data da promulgação da Constituição de 1988.

            Ora, esse artigo 231 estabelece um marco temporal para a sua aplicação: as terras em questão devem ser, comprovadamente, aquelas tradicionalmente ocupadas por índios à data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

            A expressão “ocupação tradicional” nos conduz ao direito costumeiro, que não se confunde com o direito posto, positivo ou positivado.

            Assim, tradição significa a continuidade dos costumes ao longo das gerações humanas.

            Não se confunde com o conceito de posse do direito civil. Mas tanto quanto se perde a posse por seu abandono, é possível o rompimento da tradição.

            A posse e a ocupação tradicional têm, todavia, um ponto comum. A presença humana nas respectivas áreas, nas respectivas terras.

            Desse modo, como se perde a posse civil por seu abandono, a ocupação tradicional deixa de existir por abandono da tradição.

            Cessa a tradição quando cessam os atos e fatos costumeiros que a fundamentem.

            A tradição pode ser rompida pelos seus próprios exercentes, como em consequência de atos ou fatos de terceiros.

            Assim, a ocupação de terras indígenas por fatos de terceiros começou a ocorrer a partir da chegada dos navegantes portugueses à “Terra Brasilis”. Onde ocorreu, essas terras passaram ao domínio desses invasores, em nome da Coroa Portuguesa,  transformando-se no que hoje é a República Federativa do Brasil.

            Mas esse rompimento da ocupação tradicional da terra indígena não ocorreu apenas nesses primórdios da colonização portuguesa. Prosseguiu ao longo dos anos como provado historicamente. Pela ocupação rural com fins agro-pecuários e para a implantação de zonas urbanas no território brasileiro.

             Portanto, não cabe a ninguém alegar que a quebra da ocupação tradicional de terras indígenas só possa ocorrer por iniciativa dos próprios indígenas. Jamais por sua ocupação por não-índios.

            Isso significa que a tradição pode ser rompida. E, no tocante às terras ditas indígenas, que sua ocupação não seja abandonada, por quebra da tradição. A tradição consiste num elo contínuo entre o passado e o presente.

            Cuidando-se, especificamente do significado constitucional de ocupação tradicional das terras por indígenas, isso exige a prova de que essa continuidade não foi interrompida. Por atos próprios ou por fatos de terceiros.

            Enquanto a posse civil possa decorrer da simples ocupação da terra abandonada ou usurpada, o rompimento da tradição será motivo para a perda do direito consuetudinário à terra em questão.

            Vale dizer que terras indígenas, para assim serem consideradas, exigem a comprovação da ocorrência de atos de sua continuada ocupação ao longo do tempo.

            Ou que terras antes consideradas como terras indígenas podem perder essa qualidade pelo abandono do exercício dos atos consuetudinários nelas próprias.

            Entre os atos consuetudinários temos os decorrentes das atividades pesqueiras, agrícolas, extrativistas; da caça, da colheita de frutas, etc., em áreas determinadas.

            A ocupação tradicional não prescinde, assim, desses atos presenciais nas respectivas terras, indígenas ou mesmo não indígenas. E de sua prova.

            Assim, “ocupação tradicional” exige fato presente. Nunca apenas ocupações do passado.

            Tanto isso é verdade, que nem todo o que hoje é o território brasileiro se pode dizer “tradicionalmente ocupado” por indígenas. Áreas desse território foram originalmente ocupadas por tribos diversas, até mesmo conflitantes.

            Com a chegada a estas terras do colonizador português e de outros estrangeiros, verificou-se a ocupação do território nacional por esses forasteiros, que passaram a conviver amigável ou inamistosamente com os “aborígenes”.

            Consolidou-se, ao longo dos anos, essa convivência.

            Desse modo, qualquer pretensão de tribos indígenas de ter como sua qualquer pedaço do território nacional como “terra indígena” haverá de estar amparada na prova da continuidade de sua “ocupação tradicional.” Na data da promulgação da Constituição.

            O abandono da tradição materializa-se na ausência de prova de “ocupação tradicional”.

            A antropologia nos dá um retrato da passagem do ser humano no planeta Terra. Busca, assim, as relíquias que o passado nos trouxe.

            Já, a tradição, evidencia a continuidade da ação humana, com seus costumes, transmitida ao longo do tempo, na sucessividade das gerações humanas.

            Portanto, a antropologia tem a ver com o passado, enquanto as tradições com a continuidade dos costumes até o momento presente.

            Assim, laudos antropológicos não servem de prova de ocupação presente de terra alguma.

            O artigo 231 da Constituição Federal é um fator que delimita no tempo o direito do índio a ter como sua apenas as terras que, na data da promulgação da Constituição, estivessem ocupando tradicionalmente.

            Assim, não se aplica a terras que abandonaram ou às que foram ocupadas por não-índios, nem às que eles, índios, venham, a partir daí, a ocupar.

                 Em suma, onde o índio não mais se faz presente, por quebra de sua tradição na ocupação de qualquer terra, ou por sua ocupação por não-índios, não lhe cabe invocar a garantia conferida pelo artigo 231 da Constituição Federal.