sábado, maio 14, 2022

Perda do direito dos índios às suas terras e o marco temporal do art. 231 da CF

 

                      

                São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. 

                    É o que dispõe o artigo 231 da Constituição Federal.

            Chama nossa atenção o trecho “terras que tradicionalmente ocupam”. E não que tradicionalmente ocuparam. Ou que venham a ocupar. Que “ocupem”.

            O verbo ocupar se apresenta ali no tempo presente. Nem ao passado, nem ao futuro. Presente, portanto, à data da promulgação da Constituição de 1988.

            Ora, esse artigo 231 estabelece um marco temporal para a sua aplicação: as terras em questão devem ser, comprovadamente, aquelas tradicionalmente ocupadas por índios à data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

            A expressão “ocupação tradicional” nos conduz ao direito costumeiro, que não se confunde com o direito posto, positivo ou positivado.

            Assim, tradição significa a continuidade dos costumes ao longo das gerações humanas.

            Não se confunde com o conceito de posse do direito civil. Mas tanto quanto se perde a posse por seu abandono, é possível o rompimento da tradição.

            A posse e a ocupação tradicional têm, todavia, um ponto comum. A presença humana nas respectivas áreas, nas respectivas terras.

            Desse modo, como se perde a posse civil por seu abandono, a ocupação tradicional deixa de existir por abandono da tradição.

            Cessa a tradição quando cessam os atos e fatos costumeiros que a fundamentem.

            A tradição pode ser rompida pelos seus próprios exercentes, como em consequência de atos ou fatos de terceiros.

            Assim, a ocupação de terras indígenas por fatos de terceiros começou a ocorrer a partir da chegada dos navegantes portugueses à “Terra Brasilis”. Onde ocorreu, essas terras passaram ao domínio desses invasores, em nome da Coroa Portuguesa,  transformando-se no que hoje é a República Federativa do Brasil.

            Mas esse rompimento da ocupação tradicional da terra indígena não ocorreu apenas nesses primórdios da colonização portuguesa. Prosseguiu ao longo dos anos como provado historicamente. Pela ocupação rural com fins agro-pecuários e para a implantação de zonas urbanas no território brasileiro.

             Portanto, não cabe a ninguém alegar que a quebra da ocupação tradicional de terras indígenas só possa ocorrer por iniciativa dos próprios indígenas. Jamais por sua ocupação por não-índios.

            Isso significa que a tradição pode ser rompida. E, no tocante às terras ditas indígenas, que sua ocupação não seja abandonada, por quebra da tradição. A tradição consiste num elo contínuo entre o passado e o presente.

            Cuidando-se, especificamente do significado constitucional de ocupação tradicional das terras por indígenas, isso exige a prova de que essa continuidade não foi interrompida. Por atos próprios ou por fatos de terceiros.

            Enquanto a posse civil possa decorrer da simples ocupação da terra abandonada ou usurpada, o rompimento da tradição será motivo para a perda do direito consuetudinário à terra em questão.

            Vale dizer que terras indígenas, para assim serem consideradas, exigem a comprovação da ocorrência de atos de sua continuada ocupação ao longo do tempo.

            Ou que terras antes consideradas como terras indígenas podem perder essa qualidade pelo abandono do exercício dos atos consuetudinários nelas próprias.

            Entre os atos consuetudinários temos os decorrentes das atividades pesqueiras, agrícolas, extrativistas; da caça, da colheita de frutas, etc., em áreas determinadas.

            A ocupação tradicional não prescinde, assim, desses atos presenciais nas respectivas terras, indígenas ou mesmo não indígenas. E de sua prova.

            Assim, “ocupação tradicional” exige fato presente. Nunca apenas ocupações do passado.

            Tanto isso é verdade, que nem todo o que hoje é o território brasileiro se pode dizer “tradicionalmente ocupado” por indígenas. Áreas desse território foram originalmente ocupadas por tribos diversas, até mesmo conflitantes.

            Com a chegada a estas terras do colonizador português e de outros estrangeiros, verificou-se a ocupação do território nacional por esses forasteiros, que passaram a conviver amigável ou inamistosamente com os “aborígenes”.

            Consolidou-se, ao longo dos anos, essa convivência.

            Desse modo, qualquer pretensão de tribos indígenas de ter como sua qualquer pedaço do território nacional como “terra indígena” haverá de estar amparada na prova da continuidade de sua “ocupação tradicional.” Na data da promulgação da Constituição.

            O abandono da tradição materializa-se na ausência de prova de “ocupação tradicional”.

            A antropologia nos dá um retrato da passagem do ser humano no planeta Terra. Busca, assim, as relíquias que o passado nos trouxe.

            Já, a tradição, evidencia a continuidade da ação humana, com seus costumes, transmitida ao longo do tempo, na sucessividade das gerações humanas.

            Portanto, a antropologia tem a ver com o passado, enquanto as tradições com a continuidade dos costumes até o momento presente.

            Assim, laudos antropológicos não servem de prova de ocupação presente de terra alguma.

            O artigo 231 da Constituição Federal é um fator que delimita no tempo o direito do índio a ter como sua apenas as terras que, na data da promulgação da Constituição, estivessem ocupando tradicionalmente.

            Assim, não se aplica a terras que abandonaram ou às que foram ocupadas por não-índios, nem às que eles, índios, venham, a partir daí, a ocupar.

                 Em suma, onde o índio não mais se faz presente, por quebra de sua tradição na ocupação de qualquer terra, ou por sua ocupação por não-índios, não lhe cabe invocar a garantia conferida pelo artigo 231 da Constituição Federal.