quinta-feira, agosto 25, 2005

Mercadoria estrangeira tem garantia no Brasil

Imagine, leitor, o que aconteceria se V. houvesse comprado algum produto no exterior e, trazendo-o para o Brasil, verificasse defeito de fabricação.
Imagine, também, que o certificado de garantia limitasse sua validade apenas ao território do país onde a compra tenha ocorrido.
Mas, como V., consumidor, não se conforma com essa limitação, resolve levar a mercadoria a uma autorizada no Brasil e ali é informado que o conserto pode ser feito, mas que V. vai ter de pagar por ele.
Pois, bem. Eu paguei, mas não me conformei. Movi, então, ação judicial em São Paulo, contra a empresa brasileira integrante do mesmo grupo industrial da empresa estrangeira fabricante. Perdi a ação em primeira e em segunda instâncias. Recorri, então, ao Superior Tribunal de Justiça, onde, oito anos depois, tive ganho de causa.
Ocorre que a empresa brasileira, subsidiária da fabricante estrangeira, não se conformou com essa derrota, e, no prazo legal, ajuizou perante o Superior Tribunal de Justiça, ação rescisória objetivando anular a decisão judicial que lhe fora desfavorável na ação anterior.
Nessa ação rescisória, a empresa autora, juntou aos autos do processo, parecer a seu favor, de autoria do Prof. Miguel Reale. A ação foi por mim contestada e, ontem, 24 de agosto corrente, o caso foi julgado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça.
Por maioria de votos, a ação da empresa foi julgada improcedente, confirmando-se assim a vitória deste consumidor e advogado que, aí, na verdade, agia não só em nome próprio, mas em benefício de tantos outros consumidores que venham a adquirir produtos de fabricação estrangeira, no exterior ou mesmo mediante encomenda via internet, telefone ou correio.
A ação rescisória tem o número AR 2931. A autora é Panasonic do Brasil Ltda., e o réu, eu, Plínio Gustavo Prado Garcia, atuando como advogado em causa própria.
Sustentei, ali, entre outros fundamentos, o que denominei de teoria da integração da personalidade jurídica, de maneira a considerar-se parte integrante de um todo (o conglomerado multinacional) a empresa aqui estabelecida que, por isso mesmo, se torna responsável solidária pela qualidade dos produtos fabricados sob marca mundial pelo mesmo conglomerado.

quarta-feira, agosto 24, 2005

CPMF sobre Câmbio Ficto - Inconstitucionalidade

OPERAÇÕES FICTAS DE CÂMBIO – Não Incidência de CPMF e Direito a Compensação

A Receita Federal tem exigido dos contribuintes o pagamento de CPMF em operações fictas de câmbio, como se nessas operações houvesse, efetivamente, movimentação financeira.
Casos típicos de operações fictas de câmbio se verificam ao menos em duas situações: nas conversões, em participações societárias, de dívidas contraídas no exterior, por empresas estabelecidas no Brasil, e nos reinvestimentos de lucros ou dividendos obtidos no País, por sócios ou acionistas do exterior.

No primeiro caso, o credor estrangeiro torna-se sócio ou acionista da empresa devedora brasileira. Ou, quando já seja sócio ou acionista, aumenta sua participação societária na empresa, por força da conversão de seu crédito em participação societária.
No segundo caso, o sócio ou acionista estrangeiros de empresa brasileira, ao invés de receber o lucro ou os dividendos por esta distribuídos, os reinveste na própria sociedade ou em outra sociedade existente no País ou que venha a aqui constituir.
Em nenhum desses casos ocorre, pois, efetiva movimentação financeira. Não há entrada real de divisas no País nem saída real de divisas do País.
Não há, desse modo, movimentação financeira que pudesse dar ensejo, validade, legalidade e constitucionalidade à exigência de CPMF nessas situações.
Resulta disso que as exigências da Receita Federal podem ser enfrentadas por meio de mandado de segurança preventivo, objetivando afastá-las em casos concretos, assim como para garantir ao contribuinte o direito à compensação dos valores pagos indevidamente nos últimos cinco anos. Compensação essa que poderá ser feita com quaisquer outros tributos federais.

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segunda-feira, agosto 22, 2005

Cobrança Inconstitucional no Solo Criado - Direito a Ressarcimento

LIMITAÇÕES INCONSTITUCIONAIS AO
DIREITO DE CONSTRUIR
Solo Criado?

Plínio Gustavo Prado Garcia*

1.- O Direito de Propriedade

O direito de propriedade é protegido como direito fundamental pela Constituição Federal, em seu artigo 5o, inciso XXII.

Por sua vez, o Código Civil anterior, no artigo 524 era claro ao afirmar que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua. Não discrepa desse posicionamento o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), ao reconhecer ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (art. 1.228).

O conceito de propriedade é amplo, a incluir, sem limitações, tanto os bens materiais como imateriais e os direitos a eles concernentes ou deles resultantes. Entre os bens materiais, se incluem, também, os bens móveis, imóveis e semoventes. Nesta última categoria se encontram os animais.

No entanto, para o presente tema, vamos nos restringir aos bens imóveis, terrenos urbanos sobre os quais pretenda seu proprietário promover edificações, pois o objetivo deste artigo é definir se existem ou não fundamentos constitucionais capazes de autorizar qualquer municipalidade a impedir o proprietário de edificar em seu terreno.

É evidente que as municipalidades detém o poder de orientar, disciplinar e organizar o desenvolvimento urbano, no interesse da própria coletividade.

Mas, a questão que se põe é se o direito de propriedade pode submeter-se a restrições ou limitações legais que impliquem a violação de garantias constitucionais não só ao próprio direito de propriedade, como às limitações constitucionais ao poder de tributar.

2.- Os Tributos Municipais

A Constituição Federal é clara ao estipular os tributos da competência municipal, assim como aqueles da competência da União Federal, dos Estados e do Distrito Federal.

Ao Município só cabem os impostos previstos no seu artigo 156: o imposto sobre a propriedade territorial urbana, denominado Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o imposto sobre transmissão "inter vivos" de bens imóveis, e o imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), excluídos aí os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações.

De outra parte, qualquer membro da União Federal tem o poder de instituir taxas, cuja classificação e cujo alcance não podem transbordar os limites impostos pela própria Constituição Federal no inciso II de seu artigo 145. Estas só podem ser cobradas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.

Assim, carecem os Municípios de outorga de competência constitucional para instituírem quaisquer outras exações fiscais em detrimento dos cidadãos e suas empresas localizadas em seu território. Nem mesmo multas fiscais ou administrativas, cabíveis nos termos e nos limites da lei e da Constituição, podem ser aplicadas fora de seus respectivos contextos.

3.- A Política Urbana na Constituição

Ao dispor sobre a política urbana, a Constituição Federal, no artigo 182, § 4o, faculta ao Poder Público municipal, nos termos de lei federal e mediante lei específica para a área incluída no plano diretor, exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento. Nos três incisos seguintes, esse artigo prevê as conseqüências e penalidades do não cumprimento dessas normas jurídicas.

A lei federal ali referida veio a lume em 10 de julho de 2001, sob o número 10.257 e sob a denominação de "Estatuto da Cidade".

Ainda assim, as diretrizes constitucionais do artigo 182, §4o. aqui mencionadas impõem a aprovação de Plano Diretor e de lei específica para a área nele incluída, como condição para a Municipalidade exigir do proprietário do terreno urbano o atendimento das "funções sociais" da propriedade urbana.

Como temos apontado em inúmeras ações judiciais nos últimos onze anos, ao nos opormos à aplicação de alíquotas progressivas e a alíquotas diferenciadas no âmbito da incidência do IPTU, com vitória no Plenário do Supremo Tribunal Federal, o IPTU é imposto que, por sua natureza, não se ajusta a essas pretensões fiscais.

Primeiro, porque não se pode confundir fiscalidade com extrafiscalidade. Enquanto aquela tem por objetivo a arrecadação de tributos, esta tem por finalidade estimular a prática de determinados atos pelo contribuinte, ou de induzi-lo a se abster de certas práticas ou procedimentos. Segundo, porque o tributo exige obrigação de dar (dar em pagamento o seu montante aos cofres públicos), enquanto a extrafiscalidade se direciona a obrigações de fazer ou não fazer.

Assim, o IPTU, por exemplo, não pode contemplar a imposição de penalidade por descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Esse descumprimento pode acarretar, isto sim, a imposição de penalidade, como é o caso de pena de multa. E esta nada tem a ver com alíquotas progressivas crescentes do imposto, a cada ano. Principalmente porque imposto não é penalização resultante de ato ilícito, mas obrigação derivada de lei, decorrente da ocorrência do fato capaz de desencadear a incidência tributária.

Pelas mesmas razões, o direito de construir não pode ser transformado em nova fonte de arrecadação tributária pelas municipalidades, pois as Municipalidades só terão direito, aí, de cobrar os impostos municipais já previstos na Constituição Federal, sobre a propriedade imóvel e sobre a prestação de serviços de sua competência tributária, como as taxas que lhes correspondam.

4.- Inconstitucionalidades

Desse modo, pode-se argumentar com forte embasamento jurídico e doutrinário a inconstitucionalidade dos artigos 28 a 31, que compõem a Seção IX (Da outorga onerosa do direito de construir), constante do Capítulo II (Dos Instrumentos da Política Urbana) do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001).
Essa inconstitucionalidade deflui, dentre outros, da quebra do princípio constitucional da isonomia tributária (art. 150, II, da Constituição Federal), e não apenas do princípio geral da igualdade garantido no "caput" de seu artigo 5o.

Ora, se dois ou mais contribuintes forem proprietários de terrenos urbanos em um mesmo bairro ou quarteirão e todos eles pretendessem ali erigir edifícios até o limite de andares previstos na lei específica do município para o lugar desses imóveis, o que importa, antes de tudo, é que respeitem, todos, igualmente, esse limite. Mas esse limite deve ser estabelecido a partir de critérios não arrecadatórios, de critérios baseados nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de maneira objetiva e levando em conta o interesse público, no Plano Diretor, sob pena de inconstitucionalidade. Mesmo porque o espaço aéreo sobre o terreno particular não constitui nem é propriedade municipal e não pode ser instrumento de barganha em detrimento dos direitos de seu titular.

Pondere-se, primeiramente, que é do proprietário do imóvel urbano a faculdade de nele promover ou não qualquer edificação. Esta, como acessório do terreno, é, pois, parte integrante do imóvel. Basta ler o artigo 58 do Código Civil atual e o artigo 79 do novo Código Civil, onde se vê que "São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente." Em segundo lugar, ninguém pode transmitir direito de que não seja titular.

Consequentemente, as municipalidades, neste País, têm o direito de regular a política de desenvolvimento urbano, nos limites constitucionais e legais, de forma imparcial e objetiva. Mas não têm nem o direito nem o poder de, elas próprias, criarem obstáculos, no seu próprio interesse, e em detrimento dos proprietários de imóveis urbanos e das construtoras. Estes não podem ficar submetidos a uma situação na qual, apenas se tiverem recursos financeiros, poderiam ser contemplados com a possibilidade de "adquirir" junto à Municipalidade, o direito de construir em seu imóvel particular, acima e além do coeficiente de aproveitamento básico fixado para a área específica, no Plano Diretor do Município.

É evidente que essas municipalidades, no seu intuito meramente arrecadatório, tratarão de restringir cada vez mais esses coeficientes de construção, para, assim, terem mais "solo criado" a ser cedido a título oneroso, a quem se disponha a adquirir "tal direito" e tenha recursos financeiros para tanto. Estarão, assim, tratando de legislar em causa própria, com parcialidade e falta de razoabilidade não admitidas pelo artigo 5o., inciso LIV, da Constituição Federal.
Como dito acima, essa via de arrecadação é uma burla à Constituição Federal e um meio espúrio de conceder "licença de construção" a título oneroso, onde tal licença não pode nem deve ser concedida, pois se a um proprietário o for, aos demais também deve ser concedida, garantido ao que pagou para obtê-la, o direito à restituição do valor pago.
5.- Conclusão

Em suma, ninguém pode ceder ou transferir direito que não tem. O espaço aéreo sobre o imóvel municipal particular não pertence ao Município. Este tem o direito de regular sua utilização, no interesse da coletividade dos munícipes e do bem comum. Mas não tem a titularidade da propriedade para ceder o uso do espaço aéreo, nem abaixo nem acima do limite vertical passível de edificação, a quem quer que seja, e muito menos para aquele que já seja proprietário do terreno urbano.

Esse instrumento de arrecadação carece de apoio constitucional e infringe as limitações constitucionais ao poder de tributar. Gerará um conflito de interesses entre o que seja constitucionalmente admissível e o que seja mera pretensão de engordar os cofres municipais.

Portanto, nem mesmo o Estatuto da Cidade pode autorizar essa pretensão dos municípios, e não será o Plano Diretor do Município que irá validar ou constitucionalizar essa nova modalidade de arrecadação tributária ou de tributo com efeito de confisco. Mormente quando nem desapropriação direta ou indireta tenha ocorrido, desse espaço aéreo do imóvel urbano particular.

Assim, será possível, pela via judicial, garantir-se o exercício pleno desse direito sem se submeter à condição de "outorga onerosa do direito de construir".
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* Plínio Gustavo Prado Garcia é advogado em São Paulo, fundador e sócio senior de Prado Garcia Advogados S/C, formado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 1962, e pela George Washington University, National Law Center, de Washington, D.C., em 1972, onde obteve o título de "Master of Comparative Law - American Practice". É especialista em Direito Tributário, título que lhe foi conferido em 1984 pelo Centro de Estudos de Extensão Universitária (CEEU). Por vários anos lecionou Direito Tributário nas Universidades São Judas Tadeu, e Direito Civil (Obrigações e Contratos) na Faculdade de Direito da FMU, em São Paulo. É membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), entre outros. É também autor de grande número de artigos e outras obras jurídicas, consultor jurídico, parecerista e palestrante, além de ser integrante da Comissão da OAB/SP de Defesa da República e da Democracia.

sexta-feira, agosto 19, 2005

FACTORING e COAF - Exigências Inconstitucionais


EMPRESAS DE FACTORING - Exigências inconstitucionais contidas na Resolução COAF nº 012, de 31 de maio de 2005 sobre procedimentos a serem observados pelas empresas de fomento comercial ou mercantil (factoring)

Objetivando o combate à lavagem de dinheiro, a Lei 9.613/98 incumbiu ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), a atribuição de fiscalizar as operações ilícitas por ela criminalizadas.
No entanto, a lei e suas normas complementares impõem às instituições e empresas privadas, nela mencionadas, obrigações que não podem ser exigidas dessas instituições, empresas e seus administradores.
Mais ainda quando os ameaça com severas penalidades, como advertência, multas abusivas, suspensão do exercício profissional, cassação de autorização para funcionar e até mesmo penas privativas da liberdade.
Muito embora todo crime deva ser evitado, combatido e punido, não se pode transferir a instituições privadas essas atribuições de fiscalizar e punir.
Não consta do objeto social dessas instituições e empresas exercer atividade de fiscalização de suspeita de operações ou de operações efetivas de lavagem de dinheiro.
Assim, as exigências de comunicação ao COAF de operações suspeitas, de indícios dos crimes previstos na Lei nº 9.613/98, e as ameaças previstas nessa lei de punição das pessoas obrigadas a prestar essas informações carecem de apoio constitucional, mesmo estando previstas em lei.
Basta ver que essas pessoas (caso das empresas de "factoring", entre outras citadas na lei) correm o risco de ser denunciadas criminalmente por não colaborarem com o COAF ou de ser denunciadas por crime de falsidade ideológica, caso prestem informações incompletas ou equivocadas sobre seus clientes e suas operações. Além de ficarem sujeitas às demais penalidades previstas na lei.
Sobressai, assim, a conveniência ou até mesmo a necessidade de impetração de mandado de segurança preventivo objetivando garantir a essas instituições, empresas e seus sócios e administradores o direito de não se submeterem às exigências inconstitucionais da lei e das normas regulamentares de combate à lavagem de dinheiro.
O mandado de segurança busca afastar as obrigações exigidas das empresas de "factoring" nos artigos 7 a 10 da Resolução COAF nº 12/2005 (abaixo reproduzida) e na Instrução Normativa nº 2, de 10.07.2005.
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COAF - Resolução 12/2005:
"...
Seção IV
Das Operações Atípicas
Art. 7º As pessoas mencionadas no art. 1º dispensarão especial atenção às operações ou propostas que possam constituir-se indícios dos crimes previstos na Lei nº 9.613, de 1998, ou com eles relacionarem-se.
Seção V
Das Comunicações ao COAF
Art. 8º As pessoas mencionadas no art. 1º deverão comunicar ao COAF, no prazo de vinte e quatro horas, abstendo-se de dar ciência aos clientes de tal ato, a proposta ou a realização de transações:
a) previstas no Art. 7º; e
b) previstas no Anexo a esta Resolução.
Parágrafo único. As empresas de fomento comercial ou mercantil (factoring) que, durante o semestre civil, não tiverem efetuado comunicações na forma do caput deste artigo, deverão declarar ao Coaf a inocorrência de operações ou situações descritas no caput, em até 30 dias após o fim do respectivo semestre.
Art. 9º As comunicações ao COAF feitas de boa-fé, conforme previsto no § 2º do art. 11 da Lei nº 9.613, de 1998, não acarretarão responsabilidade civil ou administrativa.
Art. 10. As informações mencionadas no art. 8º deverão ser encaminhadas por meio eletrônico ou, na eventual impossibilidade, por qualquer outro meio que preserve o sigilo da informação. ..."

quinta-feira, agosto 11, 2005

Lavagem de Dinheiro - Aspectos Críticos da Lei

ARBÍTRIO E INCONSTITUCIONALIDADE NA
LEI DE LAVAGEM DE DINHEIRO OU BENS*

Prof. Plínio Gustavo Prado Garcia

Em artigo anterior sob o título "‘Estadania’ x Cidadania" afirmei que não somos uma nação de direitos conquistados, mas de direitos negados ou concedidos pelos detentores do poder.

O constante conflito entre o Estado e o cidadão, entre o Fisco e o contribuinte, entre a autoridade do momento e os "administrados" evidencia a necessidade de estabelecer uma linha divisória entre o que é interesse público e o que é mero interesse do Estado, da Administração Pública e da Fazenda Pública.
Esses interesses nem sempre são coincidentes, especialmente quando o Estado e os servidores públicos se afastam do objetivo único de promoção do bem comum.
Isso nos leva a adotar uma postura de alerta e vigilância e de constante busca da garantia e do respeito aos direitos individuais, contra incursões inconstitucionais e ilegais dos detentores do poder.
Que o inferno está repleto de boas intenções é frase bem expressiva e bastante conhecida, pelos seus próprios fundamentos.
A Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos nela previstos; e que cria o Conselho de Controle das Atividades Financeiras - COAF -- é um exemplo de medida legislativa bem intencionada mas que traz inaceitáveis limitações aos direitos e garantias individuais protegidos pela Constituição Federal.
Pretende dita Lei punir com pena de reclusão quem oculte ou dissimule a natureza, a origem, a localização, a disposição, a movimentação ou a propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, dos crimes que especifica.
Esses crimes são os relacionados com o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; terrorismo; contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; extorsão mediante seqüestro; crimes contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos; crimes contra o sistema financeiro nacional e os praticados por organização criminosa.
Para esses casos, a Lei prevê pena de reclusão de três a dez anos e multa, aplicável também a quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer desses crimes: os converta em ativos lícitos; os adquira, receba, troque, negocie, dê ou receba em garantia, guarde ou os mantenha em depósito, ou, ainda, venha a movimentá-los ou a fazer sua transferência.
A penalidade recai também sobre quem importe ou exporte bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.
E não pára aí. Incorre, ainda, na mesma pena quem utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes mencionados na Lei; quem participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de qualquer desses crimes.
Se não houver a consumação de qualquer desses crimes, a simples tentativa é punida nos termos do parágrafo único do artigo 14 do Código Penal, isto é, com pena diminuída de um a dois terços.
O agravamento da pena ocorrerá se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa, e a redução da pena poderá ocorrer se o autor, o co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimento que conduzam à apuração das infrações penais e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.
Pode-se dizer que, até aí, a intenção da Lei é boa e se coaduna com o interesse público. Mas só até aí, pois daí em diante padece de arbítrio e de inconstitucionalidade em diversos de seus dispositivos.
Não pretendo, neste artigo, entrar na discussão dos aspectos relacionados com as disposições processuais especiais da Lei, nem dos efeitos patrimoniais e da interdição de direitos decorrentes da condenação penal, estejam no País ou no exterior os bens, direitos ou valores oriundos desses crimes.
Táticas de Terror Estatal
Se, até ali, enquanto se limita a Lei a tipificar os crimes de que trata e prever sua punição, o interesse público parece estar sendo satisfeito, o mesmo não se pode dizer quando impõe a terceiros (empresas e pessoas físicas) obrigações que ultrapassam as raias da razoabilidade e descambam para a inconstitucionalidade.
Ora, essas obrigações são inteiramente descabidas e desnecessárias. Criam no País um clima de insegurança jurídica e estimulam a formação da cultura da delação.
Que obrigações, afinal, são essas? Na Lei em comento, elas podem ser classificadas em obrigações de fazer e obrigações de prestar informações.

As pessoas (jurídicas) sujeitas a essas obrigações impostas pela dita Lei são as mencionadas no seu artigo 9º. Basta que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não, a captação, intermediação e aplicação de recursos financeiros de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira; a compra e venda de moeda estrangeira ou ouro como ativo financeiro ou instrumento cambial; a custódia, emissão, distribuição, liquidação, negociação, intermediação ou administração de títulos ou valores mobiliários.
Como se não bastasse isso, a Lei impõe essas obrigações, também: às bolsas de valores e bolsas de mercadorias ou futuros; às seguradoras, às corretoras de seguros e às entidades de previdência complementar ou de capitalização; às administradoras de cartões de credenciamento ou cartões de crédito, bem como às administradoras de consórcios para aquisição de bens ou serviços.
As exige também, das administradoras ou empresas que se utilizem de cartão ou qualquer outro meio eletrônico, magnético ou equivalente, que permita a transferência de fundos; das empresas de arrendamento mercantil (leasing) e de fomento comercial (factoring); das sociedades que efetuem distribuição de dinheiro ou quaisquer bens móveis, imóveis, mercadorias, serviços, ou, ainda, concedam descontos na sua aquisição, mediante sorteio ou método assemelhado.
Obriga, também, as filiais ou representações de entes estrangeiros que exerçam no Brasil qualquer das atividades listadas nesse artigo 9º da lei, ainda que de forma eventual.
Abrange, ainda, as demais entidades cujo funcionamento dependa de autorização de órgão regulador dos mercados financeiro, de câmbio, de capitais e de seguros.
Estende-se, igualmente, às pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras que operem no Brasil como agentes, dirigentes, procuradoras, comissionárias ou por qualquer forma representem interesses de ente estrangeiro que exerça qualquer das atividades referidas nesse mesmo artigo 9º.
Não ficam de fora as pessoas jurídicas que exerçam atividades de promoção imobiliária ou compra e venda de imóveis, nem as pessoas físicas ou jurídicas que comercializem jóias, pedras e metais preciosos, objetos de arte e antigüidades.
As obrigações
As obrigações delas exigidas pelo artigo 10 da Lei nº 9.613/98 não se limitam à identificação de seus clientes, pois abrangem a manutenção de cadastro atualizado, o registro de toda transação cujo valor ultrapasse (individualmente ou no seu conjunto em um mesmo mês-calendário) o limite fixado pela "autoridade competente" e nos termos "de instruções por esta expedidas".
São, também, obrigadas a atender, "no prazo fixado pelo órgão judicial competente" as requisições formuladas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).

Como se não fosse o bastante, a Lei exige que esses cadastros e registros sejam conservados durante período mínimo de cinco anos a partir do encerramento da conta ou da conclusão da transação, permitindo que a "autoridade competente" venha a ampliar discricionariamente esse prazo.

Delação Inconstitucional

O artigo 10º da Lei em exame institui no Brasil o nazismo no campo da comunicação de atividades financeiras.
A partir da vigência dessa Lei de 3 de março de 1998, as pessoas acima mencionadas não são mais instituições privadas. Ficam transformadas em agentes da Fiscalização e da Administração Pública, sem remuneração por seus serviços, mas submetidas, de outro lado, às graves penalidades prescritas no artigo 12º sob o título de "Responsabilidade Administrativa".
As absurdas cominações, que se iniciam com advertência, abrangem, cumulativamente ou não, multa pecuniária, inabilitação temporária e cessação da autorização para operação ou funcionamento.
Quanto à multa pecuniária, é ela variável de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente (?) seria obtido pela realização da operação, ou, ainda, multa de até R$200.000,00 (duzentos mil reais). Ora, nenhum servidor público nas mesmas condições se acha submetido a tais despautérios.
Apresentam-se também desmedidas, irrazoáveis, absurdas e inconstitucionais as penas de inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas que a lei considera a ela sujeitas.
Mais grave ainda, pretender cassar a autorização para operação ou funcionamento pelo descumprimento de obrigação que entendemos injustificada, desnecessária e que, se cumprida, poderia ensejar contra quem a tenha cumprido, o ajuizamento, pelo cliente, de ação indenizatória ou por danos morais.
Não se pode esquecer que as exigências de cadastro e registro das operações dos clientes esbarra, muitas vezes, nas imposições constitucionais do dever de sigilo e de respeito à intimidade.
A Constituição Federal garante, também, a segurança jurídica, a ordem social, a livre iniciativa e o respeito ao devido processo legal e ao direito de ampla defesa.
A delação institucionalizada quebra a ordem social e traz intranqüilidade nos negócios e nas relações pessoais e profissionais.

No Estado Democrático de Direito os meios têm de ser condizentes com os fins perquiridos. Não basta a boa vontade do legislador nem da autoridade administrativa. Impõe-se o respeito à Constituição e às garantias que ela oferece aos direitos individuais e coletivos.
Recomendação
Diante desse grave quadro para as pessoas jurídicas (e físicas) que a Lei nº 9.613/98 transforma inconstitucionalmente em delatores e "coadjuvantes da Administração Pública" só me resta recomendar a adoção de medidas judiciais preventivas para evitar sua submissão aos rigores dessa lei.

A alternativa será a assunção dos riscos de serem punidas com advertência, multa pecuniária, inabilitação temporária ou cassação de autorização para operação ou funcionamento. Caso em que terão de enfrentar as autuações e até mesmo a acusação de estarem cooperando com prática dos crimes tipificados nessa lei.
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Plínio Gustavo Prado Garcia é advogado em São Paulo, fundador e sócio senior de Prado Garcia Advogados S/C, formado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 1962, e pela George Washington University, National Law Center, de Washington, D.C., em 1972, onde obteve o título de "Master of Comparative Law - American Practice". É especialista em Direito Tributário, título que lhe foi conferido em 1984 pelo Centro de Estudos de Extensão Universitária (CEEU). Por vários anos lecionou Direito Tributário nas Universidades São Judas Tadeu, e Direito Civil (Obrigações e Contratos) na Faculdade de Direito da FMU, em São Paulo. É membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) e da Comissão da OAB/SP de Defesa da República e da Democracia, entre outros. Autor de inúmeros artigos, comentários e outras obras jurídicas, consultor jurídico e parecerista.
E-mail:
www.pradogarcia.com.br
*Este artigo foi publicado inicialmente na Gazeta Mercantil de 5 de julho de 1999 e subseqüentemente na Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), edição 43, julho/agosto de 1999. Suas razões e fundamentos continuam válidos até a presente data.

sexta-feira, agosto 05, 2005

Delação Oficializada

É preceito jurídico e legal que ninguém pode alegar desconhecimento da lei para deixar de cumpri-la ou para se eximir das consequências de seu descumprimento.
Se isso não deixa de ser verdade, não menos verdade é o fato de que nem toda obrigação decorrente de lei preenche os requisitos jurídicos e constitucionais de validade.
Isso significa que ninguém pode ser compelido a cumprir norma legal aplicada em desconformidade com a lei, ou lei que esteja em descompasso com a lei maior, que, entre nós, é a Constituição da República.
Minha preocupação, ao tocar nesses assuntos, está voltada para a defesa de nossos direitos enquanto cidadãos livres e amantes da liberdade e da justiça. Por isso mesmo, sob uma Constituição que impõe o respeito ao Estado Democrático de Direito, exige-se do jurista, do advogado e do magistrado toda cautela objetivando a proteção dos direitos individuais e coletivos.
O desenvolvimento dos meios de comunicação, como o que estou aqui e agora usando, permitiu a eliminação de fronteiras físicas. Pela Internet, estamos presentes em qualquer lugar do mundo, com possibilidade de comunicação instantânea. Para o bem e para o mal. Para a realização de negócios lícitos, tanto quanto de outros não tão lícitos ou claramente ilícitos.
Nossa individualidade e nossa vida íntima ficam facilmente expostas em grau nunca antes visto na história da humanidade. A privacidade, apesar disso, é um bem de valor inestimável, que não pode ficar ao desamparo da lei e do Poder Judiciário. Mais do que isso, a garantia da privacidade
de cada um de nós, enquanto interessa individualmente a cada um de nós, é de interesse da sociedade como um todo.
Sempre tenho afirmado que o interesse social não pode sufocar o direito individual, mas, antes de tudo, com ele se harmonizar. Isso porque o respeito ao interesse individual, de modo a não lhe impor lesão alguma, é de interesse de toda a sociedade.
Por isso mesmo, ninguém pode ser compelido a atuar como delator, ainda que haja interesse da sociedade de se proteger contra a ameaça de crime ou de se defender de atos criminosos.
A colaboração com as autoridades competentes é recomendável, motivo pelo qual se justificam os telefones públicos conhecidos por "disque denúncia" ou por denominações equivalentes. Evita-se, desse modo, expor o informante a possíveis represálias de suspeitos ou de condenados.
No entanto, há uma lei que trata de oficializar a delação, transformando em informantes compulsórios e passíveis de graves punições, pessoas cujas atividades regulares nada têm a ver com atribuições de investigação e de policiamento.
Essas pessoas, físicas e jurídicas, são aquelas cujas profissões ou atividades se acham elencadas no artigo 9º da Lei 9.613/98, que ficou conhecida como a "Lei contra Lavagem de Dinheiro".
De modo geral, são operações que envolvem a movimentação de moeda nacional ou estrangeira, recursos financeiros, a aquisição de bens, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro.
Essas pessoas, nessas atividades profissionais, são obrigadas a fazer a identificação de seus clientes e a manutenção de registros das operações que realizem. O que, enquanto limitado a isso, não ofende direito de ninguém. É obrigação legal até aí válida e constitucional.
Entretanto, o art. 11 dessa Lei extrapola os limites da constitucionalidade ao exigir desses profissionais o dever de comunicar ao órgão próprio fiscalizador ou regulador, e, na falta deste, ao Conselho de Controle das Atividades Financeiras (COAF), todas as transações envolvendo operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades competentes, possam constituir-se no que a lei qualifica de "sérios indícios dos crimes" nela previstos ou que possam com eles estar relacionados. Em outras palavras, essas pessoas devem suspeitar sempre de seus clientes efetivos ou potenciais, ainda que as transações não se materializem por ficarem apenas nos limites de mera proposta.
Como se esses profissionais fossem servidores públicos, pagos pelo contribuinte e não por suas empresas ou seus patrões, no âmbito da iniciativa privada, a "Lei contra Lavagem de Dinheiro" os submete a absurdas, descabidas e inconstitucionais punições. Estas vão desde a aplicação de multa pecuniária variável, de um por cento até o dobro do valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que presumivelmente seria obtido pela realização da operação, ou, ainda, multa de até R$ 200.000,00, à decretação de inabilitação temporária, pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador das pessoas jurídicas referidas em seu artigo 9º, chegando até mesmo à cassação da autorização para operação ou funcionamento.
Se o combate ao crime organizado, ao tráfico de entorpecentes, à pratica de qualquer outro crime a todos nós interessa, nem por isso empresários, administradores de empresas, gerentes ou outros empregados dessas empresas ou instituições privadas podem ser validamente transformados em "delatores oficiais" ou em investigadores das atividades de seus clientes.
Saliente-se que não são servidores públicos, pagos para exercer essas atividades fiscalizatórias.
Não fizeram qualquer opção por profissão de informantes ou pela delação de seus clientes. Atuam esses profissionais sob o regime de livre iniciativa e livre concorrência. Como lhes assegura o art. 170 da Constituição Federal. Não pediram, não querem nem aceitam essa "função paralela de delatores oficiais."
Há, desse modo, fundamentos constitucionais válidos para não se submeterem a essas absurdas exigências e descabidas punições, como, aliás, já tive oportunidade de destacar em artigo publicado na Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, em que apontei o COAF como sendo a Gestapo das Atividades Financeiras no Brasil. Não porque essas atividades criminosas não devam ser evitadas e punidas. Mas porque a lei, como está, ultrapassa os limites da constitucionalidade, o que não podemos aceitar.
Aos interessados, informo que a Câmara de Comércio Suíço-Brasileira em São Paulo realizará evento dia 12 de agosto corrente, com início às 8:30 horas, no qual este que aqui escreve falará sobre Lavagem de Dinheiro - Aspectos Práticos e Legais. Nosso intuito é, mais do que tudo, orientar os participantes sobre meios de proteção jurídica, para que não se envolvam involuntariamente em tais ilícitos penais, e, aos inocentes, como evitar ou afastar sua condenação penal.