segunda-feira, agosto 22, 2005

Cobrança Inconstitucional no Solo Criado - Direito a Ressarcimento

LIMITAÇÕES INCONSTITUCIONAIS AO
DIREITO DE CONSTRUIR
Solo Criado?

Plínio Gustavo Prado Garcia*

1.- O Direito de Propriedade

O direito de propriedade é protegido como direito fundamental pela Constituição Federal, em seu artigo 5o, inciso XXII.

Por sua vez, o Código Civil anterior, no artigo 524 era claro ao afirmar que a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua. Não discrepa desse posicionamento o novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002), ao reconhecer ao proprietário a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha (art. 1.228).

O conceito de propriedade é amplo, a incluir, sem limitações, tanto os bens materiais como imateriais e os direitos a eles concernentes ou deles resultantes. Entre os bens materiais, se incluem, também, os bens móveis, imóveis e semoventes. Nesta última categoria se encontram os animais.

No entanto, para o presente tema, vamos nos restringir aos bens imóveis, terrenos urbanos sobre os quais pretenda seu proprietário promover edificações, pois o objetivo deste artigo é definir se existem ou não fundamentos constitucionais capazes de autorizar qualquer municipalidade a impedir o proprietário de edificar em seu terreno.

É evidente que as municipalidades detém o poder de orientar, disciplinar e organizar o desenvolvimento urbano, no interesse da própria coletividade.

Mas, a questão que se põe é se o direito de propriedade pode submeter-se a restrições ou limitações legais que impliquem a violação de garantias constitucionais não só ao próprio direito de propriedade, como às limitações constitucionais ao poder de tributar.

2.- Os Tributos Municipais

A Constituição Federal é clara ao estipular os tributos da competência municipal, assim como aqueles da competência da União Federal, dos Estados e do Distrito Federal.

Ao Município só cabem os impostos previstos no seu artigo 156: o imposto sobre a propriedade territorial urbana, denominado Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o imposto sobre transmissão "inter vivos" de bens imóveis, e o imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS), excluídos aí os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações.

De outra parte, qualquer membro da União Federal tem o poder de instituir taxas, cuja classificação e cujo alcance não podem transbordar os limites impostos pela própria Constituição Federal no inciso II de seu artigo 145. Estas só podem ser cobradas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.

Assim, carecem os Municípios de outorga de competência constitucional para instituírem quaisquer outras exações fiscais em detrimento dos cidadãos e suas empresas localizadas em seu território. Nem mesmo multas fiscais ou administrativas, cabíveis nos termos e nos limites da lei e da Constituição, podem ser aplicadas fora de seus respectivos contextos.

3.- A Política Urbana na Constituição

Ao dispor sobre a política urbana, a Constituição Federal, no artigo 182, § 4o, faculta ao Poder Público municipal, nos termos de lei federal e mediante lei específica para a área incluída no plano diretor, exigir do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento. Nos três incisos seguintes, esse artigo prevê as conseqüências e penalidades do não cumprimento dessas normas jurídicas.

A lei federal ali referida veio a lume em 10 de julho de 2001, sob o número 10.257 e sob a denominação de "Estatuto da Cidade".

Ainda assim, as diretrizes constitucionais do artigo 182, §4o. aqui mencionadas impõem a aprovação de Plano Diretor e de lei específica para a área nele incluída, como condição para a Municipalidade exigir do proprietário do terreno urbano o atendimento das "funções sociais" da propriedade urbana.

Como temos apontado em inúmeras ações judiciais nos últimos onze anos, ao nos opormos à aplicação de alíquotas progressivas e a alíquotas diferenciadas no âmbito da incidência do IPTU, com vitória no Plenário do Supremo Tribunal Federal, o IPTU é imposto que, por sua natureza, não se ajusta a essas pretensões fiscais.

Primeiro, porque não se pode confundir fiscalidade com extrafiscalidade. Enquanto aquela tem por objetivo a arrecadação de tributos, esta tem por finalidade estimular a prática de determinados atos pelo contribuinte, ou de induzi-lo a se abster de certas práticas ou procedimentos. Segundo, porque o tributo exige obrigação de dar (dar em pagamento o seu montante aos cofres públicos), enquanto a extrafiscalidade se direciona a obrigações de fazer ou não fazer.

Assim, o IPTU, por exemplo, não pode contemplar a imposição de penalidade por descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Esse descumprimento pode acarretar, isto sim, a imposição de penalidade, como é o caso de pena de multa. E esta nada tem a ver com alíquotas progressivas crescentes do imposto, a cada ano. Principalmente porque imposto não é penalização resultante de ato ilícito, mas obrigação derivada de lei, decorrente da ocorrência do fato capaz de desencadear a incidência tributária.

Pelas mesmas razões, o direito de construir não pode ser transformado em nova fonte de arrecadação tributária pelas municipalidades, pois as Municipalidades só terão direito, aí, de cobrar os impostos municipais já previstos na Constituição Federal, sobre a propriedade imóvel e sobre a prestação de serviços de sua competência tributária, como as taxas que lhes correspondam.

4.- Inconstitucionalidades

Desse modo, pode-se argumentar com forte embasamento jurídico e doutrinário a inconstitucionalidade dos artigos 28 a 31, que compõem a Seção IX (Da outorga onerosa do direito de construir), constante do Capítulo II (Dos Instrumentos da Política Urbana) do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001).
Essa inconstitucionalidade deflui, dentre outros, da quebra do princípio constitucional da isonomia tributária (art. 150, II, da Constituição Federal), e não apenas do princípio geral da igualdade garantido no "caput" de seu artigo 5o.

Ora, se dois ou mais contribuintes forem proprietários de terrenos urbanos em um mesmo bairro ou quarteirão e todos eles pretendessem ali erigir edifícios até o limite de andares previstos na lei específica do município para o lugar desses imóveis, o que importa, antes de tudo, é que respeitem, todos, igualmente, esse limite. Mas esse limite deve ser estabelecido a partir de critérios não arrecadatórios, de critérios baseados nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de maneira objetiva e levando em conta o interesse público, no Plano Diretor, sob pena de inconstitucionalidade. Mesmo porque o espaço aéreo sobre o terreno particular não constitui nem é propriedade municipal e não pode ser instrumento de barganha em detrimento dos direitos de seu titular.

Pondere-se, primeiramente, que é do proprietário do imóvel urbano a faculdade de nele promover ou não qualquer edificação. Esta, como acessório do terreno, é, pois, parte integrante do imóvel. Basta ler o artigo 58 do Código Civil atual e o artigo 79 do novo Código Civil, onde se vê que "São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente." Em segundo lugar, ninguém pode transmitir direito de que não seja titular.

Consequentemente, as municipalidades, neste País, têm o direito de regular a política de desenvolvimento urbano, nos limites constitucionais e legais, de forma imparcial e objetiva. Mas não têm nem o direito nem o poder de, elas próprias, criarem obstáculos, no seu próprio interesse, e em detrimento dos proprietários de imóveis urbanos e das construtoras. Estes não podem ficar submetidos a uma situação na qual, apenas se tiverem recursos financeiros, poderiam ser contemplados com a possibilidade de "adquirir" junto à Municipalidade, o direito de construir em seu imóvel particular, acima e além do coeficiente de aproveitamento básico fixado para a área específica, no Plano Diretor do Município.

É evidente que essas municipalidades, no seu intuito meramente arrecadatório, tratarão de restringir cada vez mais esses coeficientes de construção, para, assim, terem mais "solo criado" a ser cedido a título oneroso, a quem se disponha a adquirir "tal direito" e tenha recursos financeiros para tanto. Estarão, assim, tratando de legislar em causa própria, com parcialidade e falta de razoabilidade não admitidas pelo artigo 5o., inciso LIV, da Constituição Federal.
Como dito acima, essa via de arrecadação é uma burla à Constituição Federal e um meio espúrio de conceder "licença de construção" a título oneroso, onde tal licença não pode nem deve ser concedida, pois se a um proprietário o for, aos demais também deve ser concedida, garantido ao que pagou para obtê-la, o direito à restituição do valor pago.
5.- Conclusão

Em suma, ninguém pode ceder ou transferir direito que não tem. O espaço aéreo sobre o imóvel municipal particular não pertence ao Município. Este tem o direito de regular sua utilização, no interesse da coletividade dos munícipes e do bem comum. Mas não tem a titularidade da propriedade para ceder o uso do espaço aéreo, nem abaixo nem acima do limite vertical passível de edificação, a quem quer que seja, e muito menos para aquele que já seja proprietário do terreno urbano.

Esse instrumento de arrecadação carece de apoio constitucional e infringe as limitações constitucionais ao poder de tributar. Gerará um conflito de interesses entre o que seja constitucionalmente admissível e o que seja mera pretensão de engordar os cofres municipais.

Portanto, nem mesmo o Estatuto da Cidade pode autorizar essa pretensão dos municípios, e não será o Plano Diretor do Município que irá validar ou constitucionalizar essa nova modalidade de arrecadação tributária ou de tributo com efeito de confisco. Mormente quando nem desapropriação direta ou indireta tenha ocorrido, desse espaço aéreo do imóvel urbano particular.

Assim, será possível, pela via judicial, garantir-se o exercício pleno desse direito sem se submeter à condição de "outorga onerosa do direito de construir".
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* Plínio Gustavo Prado Garcia é advogado em São Paulo, fundador e sócio senior de Prado Garcia Advogados S/C, formado em Direito pela Universidade de São Paulo, em 1962, e pela George Washington University, National Law Center, de Washington, D.C., em 1972, onde obteve o título de "Master of Comparative Law - American Practice". É especialista em Direito Tributário, título que lhe foi conferido em 1984 pelo Centro de Estudos de Extensão Universitária (CEEU). Por vários anos lecionou Direito Tributário nas Universidades São Judas Tadeu, e Direito Civil (Obrigações e Contratos) na Faculdade de Direito da FMU, em São Paulo. É membro da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), entre outros. É também autor de grande número de artigos e outras obras jurídicas, consultor jurídico, parecerista e palestrante, além de ser integrante da Comissão da OAB/SP de Defesa da República e da Democracia.