Estado de Direito e Abuso de Poder nas Desapropriações
É comum a ocorrência de desapropriações por necessidade pública, como nos casos de aberturas de estradas, ruas, obras públicas relacionadas com construção de linhas de metrô, ferrovias, hospitais, centros de saúde, etc.
Sobressai, aí, o interesse público, que se sobrepõe ao dos particulares.
Nesses casos, a desapropriação poderá recair sobre terrenos sem edificação, tanto quanto sobre aqueles edificados.
A lei (Decreto-Lei 3.365/1941) exige a edição de decreto governamental declarando de utilidade pública para fins de desapropriação os imóveis a serem por ela atingidos.
De igual modo, se prevê a desapropriação por interesse social, que não deixa de ser interesse público, ainda que essa modalidade de expropriação de bem particular seja voltada ao atendimento da comunidade, como na implantação de zonas de especial interesse social para edificações residenciais.
De outra parte, pode-se estabelecer uma separação entre o que seja interesse público e interesse da administração pública.
Este, o interesse da administração pública, não pode, sob o Estado Democrático de Direito, ficar dissociado do interesse público, nem contra este prevalecer.
Caso típico de alegado interesse da administração pública se verifica nas hipóteses em que um ente público busque desapropriação de imóvel edificado para ali instalar quaisquer de suas repartições.
A lei não contempla essa hipótese de desapropriação. Prevê apenas a possibilidade de desapropriação para a construção de edifício público.
Isso faz sentido, considerando o comando constitucional da função social da propriedade.
A exigência constitucional de cumprimento da função social da propriedade funciona tanto contra, quanto a favor do proprietário e de todos quantos usem o imóvel.
Se, de um lado, esse princípio constitucional impõe ônus ao proprietário ou usuário, de outro, vem em seu socorro quando a propriedade esteja a cumprir sua função social.
Por isso mesmo, a proteção constitucional a todos quantos cumpram a função social da propriedade se estende não só ao proprietário, quanto ao possuidor ou usuário, seja a que título for.
Dessa maneira, fazem jus à proteção constitucional e legal não só o proprietário, como o possuidor ou usuário do imóvel.
Isso significa que não podem ser atingidos por atos expropriatórios de mero interesse da administração pública, a menos que se trate de desapropriação para construção de edifício público, quando inexista alternativa menos onerosa e menos danosa a essas pessoas.
Impõe-se, nesse particular, que a administração pública eleja imóvel ou imóveis que possam trazer aos seus proprietários, possuidores ou usuários, menor impacto pessoal e social. Há de ser respeitada uma gradação numa ordem inversa, em que em último lugar esteja o imóvel edificado, utilizado e que, assim, esteja satisfazendo ao requisito constitucional da função social da propriedade.
Dessa maneira, não é lícito à administração pública desapropriar para seu próprio uso, imóvel edificado cuja função social esteja sendo satisfeita.
Ademais, não é lícito, também, à administração pública, agindo no seu próprio interesse ou na sua própria conveniência, alegar que a Constituição preveja a indenização prévia e justa do desapropriado, como se a desapropriação de imóvel edificado e cumprindo a função social da propriedade se limitasse ao terreno com sua edificação. Ora, há direitos humanos aí envolvidos. Direitos de pessoas físicas e jurídicas instaladas nesses imóveis, que não podem dali ser expulsos como se invasores fossem.
É sabido que o direito de propriedade abrange, também, seus consectários: usar, fruir, gozar e dispor da propriedade.
No terreno não edificado, uma desapropriação terá impacto menor, quando comparado com a que se faça em imóvel edificado. Neste, tanto maior será o impacto social quanto maiores forem a edificação e o número de usuários de suas unidades autônomas.
Isso conduz à conclusão de que certa está a lei (Decreto-Lei 3.365/1941) quando, em seu artigo 5, letra “m” autoriza desapropriação para a construção de edifício público. Pondere-se que a essa época, não havia ainda qualquer dispositivo legal ou constitucional que impusesse o cumprimento da função social da propriedade.
Se, então, não havia previsão legal para desapropriação de imóvel edificado para nele se instalarem órgãos ou repartições da administração pública, muito menos agora, sob o comando da função social da propriedade, poderá recair sobre imóvel edificado a desapropriação por interesse da administração pública.
É abuso de poder desconsiderar os direitos humanos e sociais de todos – pessoas físicas ou jurídicas – quantos estejam a exercer no imóvel edificado suas regulares atividades profissionais. Pouco importa, nesse particular, se essa ocupação é feita na qualidade de donos, de proprietários desses imóveis, ou de meros usuários deles.
Em suma, nulo será o ato administrativo que vise à desapropriação de imóveis edificados, onde a função social da propriedade esteja sendo cumprida, se o intuito da desapropriação for o ocupar suas instalações para nelas acomodar seus órgãos, repartições ou dependências administrativas.
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