quarta-feira, setembro 06, 2023

Terras indígenas: um novo enfoque jurídico

            Um novo enfoque jurídico sobre a caracterização de terras indígenas

O que aqui passo a escrever é um desdobramento de meu anterior artigo deste setembro de 2023 sob o título “Índios – Terras – Ocupação tradicional: um conceito fluido.”

Ali analisei o alcance da expressão contida no artigo 231 da vigente Constituição Federal, ao afirmar serem reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Esse artigo da Constituição não conceituou o alcance da expressão “terras que tradicionalmente ocupam”. 

O marco histórico-temporal

Todavia, podemos dar-lhe a devida conceituação a partir do elemento histórico dessas ocupações.

Desse modo, pode-se inferir que são tradicionalmente ocupadas por índios a terras livres, assim consideradas as que, ao longo da colonização brasileira não tenham sido ocupadas por não-índios.

Esse fenômeno do rompimento da ocupação de terras antes tradicionalmente ocupadas por povos originários no continente americano, o Brasil aí incluído, vem ocorrendo, entre nós, por omissão exclusiva da União Federal, no seu constitucional dever de demarcá-las.

Efeitos da omissão da União

Assim sendo, a União Federal terá de assumir as consequências do descumprimento do seu dever constitucional.

Como exigência de garantir a paz social, e independentemente de qualquer marco temporal, a União: a) só poderá demarcar como terras indígenas aquelas em que a ocupação tradicional não tenha sido encerrada por atos ou fatos dos próprios indígenas; e b) que não tenham sido ocupadas por não-índios, nas cidades e nos campos.

Outros e efeitos da omissão da União

Ante essa omissão da União, não terá ela o direito de reintegrar os indígenas nas terras que perderam sua caracterização jurídica de tradicionalmente ocupadas, cabendo a ela, União, garantir aos novos possuidores não índios a posse dessas terras, inclusive para fins de usucapião.

E mais, ainda: os possuidores de terras não antes demarcadas, que delas tenham sido judicialmente despojados, farão jus à sua reintegração nessas terras antes indígenas, cabendo à União, por sua omissão, o dever de reparação aos indígenas conforme venha a ser determinado em lei.

Esses efeitos atingem até mesmo as decisões do Supremo Tribunal Federal que, a favor de indígenas, tenham a eles devolvido terras sem demarcação pela União, delas despejando ocupantes não-índios. Como no caso da terra yanomami.  

Preservação do novo “status ocupacional”

Esse novo “status ocupacional” constitui fato novo superveniente para a garantia do direito dos não-índios à manutenção na posse de terras indígenas que estes antes ocupavam tradicionalmente.

A se pretender voltar no tempo ao “status quo ante” teríamos de devolver aos povos originários a totalidade do território nacional.

É nesse sentido que devemos interpretar fática, histórica e juridicamente o disposto no citado artigo 231 da Constituição. Só assim teremos paz social relacionada com a ocupação territorial nesta República Federativa do Brasil.

A função social da propriedade

Note-se, por último, a necessidade de conjugar esse artigo 231 com o artigo 186, ambos da Constituição Federal sobre a caracterização do instituto da função social da propriedade.

Segundo esse artigo 186, a função social é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente a alguns requisitos, como a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, a preservação do meio ambiente e a observância da legislação trabalhista.

Também por isso, não se pode devolver aos índios terras não demarcadas como tradicionalmente por eles ocupadas, cuja ocupação haja cessado pela superveniente ocupação por não-índios.

Como onde a exigência constitucional de cumprimento da função social da propriedade rural esteja sendo cumprida não cabe sua desapropriação para reforma agrária, “mutatis mutandis” não caberá, também, a desocupação de antigas terras indígenas a favor destes, que passaram a ser ocupadas por não-índios ao longo da colonização brasileira.

Leia-se, a propósito a recentíssima decisão unânime do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3865, na sessão virtual encerrada no dia primeiro deste mês de setembro, no sentido de que são imunes à de desapropriação para fins de reforma agrária as propriedades que cumpram sua função social.

Acrescento, no entanto, que quem exige de terceiros sem qualquer vínculo fático ou jurídico com esses terceiros a apresentação de resultados deve a eles prover os meios. A garantia do direito de propriedade é inerente à exigência de paz social.  E a relativização desse direito para a paz em nada contribui. Muito pelo contrário.

Conclusão

Portanto, em respeito ao elemento histórico-temporal da colonização do Brasil, e à exigência de paz social nos campos e nas cidades, deixam de ser terras indígenas aquelas ainda não demarcadas pela União, que já passaram ou venham a passar a ser ocupadas por não-índios.

Esses argumentos e fundamentos fáticos com efeitos jurídicos devem prevalecer sobre o que o Supremo Tribunal Federal está decidindo nos autos do processo do marco temporal para a demarcação de terras indígenas. Mais ainda porque não cabe ao Supremo fazer-se de legislador invadindo a competência constitucional do Congresso Nacional.

Os ruralistas não-índios merecem o respeito de todos nós na preservação dos seus direitos sobre as terras que a União deixou de demarcar como terras indígenas. E isso é do interesse nacional.

Assim, o "marco temporal" cede lugar, aí, ao "marco histórico" de cada ocupação da Terra Brasilis por não-índios.