domingo, abril 22, 2018
Em agosto de 2005, escrevi neste blog este artigo sob o título "Delação Oficializada". E, sobre esse tema, proferi, no mesmo mês, palestra em evento da Câmara de Comércio Suiço-Brasileira em São Paulo, quando falei sobre "Lavagem de Dinheiro -
Aspectos Práticos e Legais".
Dado o momento em que o País atravessa, em consequência dos fatos apurados no âmbito da "Lava Jato", entendi conveniente reproduzi-lo neste espaço, como segue. Vejamos:
É preceito
jurídico e legal que ninguém pode alegar desconhecimento da lei para
deixar de cumpri-la ou para se eximir das consequências de seu
descumprimento.
Se
isso não deixa de ser verdade, não menos verdade é o fato de que nem
toda obrigação decorrente de lei preenche os requisitos jurídicos e
constitucionais de validade.
Isso
significa que ninguém pode ser compelido a cumprir norma legal aplicada
em desconformidade com a lei, ou lei que esteja em descompasso com a
lei maior, que, entre nós, é a Constituição da República.
Minha
preocupação, ao tocar nesses assuntos, está voltada para a defesa de
nossos direitos enquanto cidadãos livres e amantes da liberdade e da
justiça. Por isso mesmo, sob uma Constituição que impõe o respeito ao
Estado Democrático de Direito, exige-se do jurista, do advogado e do
magistrado toda cautela objetivando a proteção dos direitos individuais e
coletivos.
O
desenvolvimento dos meios de comunicação, como o que estou aqui e agora
usando, permitiu a eliminação de fronteiras físicas. Pela Internet,
estamos presentes em qualquer lugar do mundo, com possibilidade de
comunicação instantânea. Para o bem e para o mal. Para a realização de
negócios lícitos, tanto quanto de outros não tão lícitos ou claramente
ilícitos.
Nossa
individualidade e nossa vida íntima ficam facilmente expostas em grau
nunca antes visto na história da humanidade. A privacidade, apesar
disso, é um bem de valor inestimável, que não pode ficar ao desamparo da
lei e do Poder Judiciário. Mais do que isso, a garantia da privacidade de cada um de nós, enquanto interessa individualmente a cada um de nós, é de interesse da sociedade como um todo.
Sempre
tenho afirmado que o interesse social não pode sufocar o direito
individual, mas, antes de tudo, com ele se harmonizar. Isso porque o
respeito ao interesse individual, de modo a não lhe impor lesão alguma, é
de interesse de toda a sociedade.
Por
isso mesmo, ninguém pode ser compelido a atuar como delator, ainda que
haja interesse da sociedade de se proteger contra a ameaça de crime ou
de se defender de atos criminosos.
A
colaboração com as autoridades competentes é recomendável, motivo pelo
qual se justificam os telefones públicos conhecidos por "disque
denúncia" ou por denominações equivalentes. Evita-se, desse modo, expor o
informante a possíveis represálias de suspeitos ou de condenados.
No
entanto, há uma lei que trata de oficializar a delação, transformando
em informantes compulsórios e passíveis de graves punições, pessoas
cujas atividades regulares nada têm a ver com atribuições de
investigação e de policiamento.
Essas
pessoas, físicas e jurídicas, são aquelas cujas profissões ou
atividades se acham elencadas no artigo 9º da Lei 9.613/98, que ficou
conhecida como a "Lei contra Lavagem de Dinheiro".
De
modo geral, são operações que envolvem a movimentação de moeda nacional
ou estrangeira, recursos financeiros, a aquisição de bens, títulos e
valores mobiliários, títulos de crédito, metais ou qualquer ativo
passível de ser convertido em dinheiro.
Essas
pessoas, nessas atividades profissionais, são obrigadas a fazer a
identificação de seus clientes e a manutenção de registros das operações
que realizem. O que, enquanto limitado a isso, não ofende direito de
ninguém. É obrigação legal até aí válida e constitucional.
Entretanto,
o art. 11 dessa Lei extrapola os limites da constitucionalidade ao
exigir desses profissionais o dever de comunicar ao órgão próprio
fiscalizador ou regulador, e, na falta deste, ao Conselho de Controle
das Atividades Financeiras (COAF), todas as transações envolvendo
operações que, nos termos de instruções emanadas das autoridades
competentes, possam constituir-se no que a lei qualifica de "sérios
indícios dos crimes" nela previstos ou que possam com eles estar
relacionados. Em outras palavras, essas pessoas devem suspeitar sempre
de seus clientes efetivos ou potenciais, ainda que as transações não se
materializem por ficarem apenas nos limites de mera proposta.
Como
se esses profissionais fossem servidores públicos, pagos pelo
contribuinte e não por suas empresas ou seus patrões, no âmbito da
iniciativa privada, a "Lei contra Lavagem de Dinheiro" os submete a
absurdas, descabidas e inconstitucionais punições. Estas vão desde a
aplicação de multa pecuniária variável, de um por cento até o dobro do
valor da operação, ou até duzentos por cento do lucro obtido ou que
presumivelmente seria obtido pela realização da operação, ou, ainda,
multa de até R$ 200.000,00, à decretação de inabilitação temporária,
pelo prazo de até dez anos, para o exercício do cargo de administrador
das pessoas jurídicas referidas em seu artigo 9º, chegando até mesmo à
cassação da autorização para operação ou funcionamento.
Se
o combate ao crime organizado, ao tráfico de entorpecentes, à pratica
de qualquer outro crime a todos nós interessa, nem por isso empresários,
administradores de empresas, gerentes ou outros empregados dessas
empresas ou instituições privadas podem ser validamente transformados em
"delatores oficiais" ou em investigadores das atividades de seus
clientes.
Saliente-se que não são servidores públicos, pagos para exercer essas atividades fiscalizatórias.
Não
fizeram qualquer opção por profissão de informantes ou pela delação de
seus clientes. Atuam esses profissionais sob o regime de livre
iniciativa e livre concorrência. Como lhes assegura o art. 170 da
Constituição Federal. Não pediram, não querem nem aceitam essa "função
paralela de delatores oficiais."
Há,
desse modo, fundamentos constitucionais válidos para não se submeterem a
essas absurdas exigências e descabidas punições, como, aliás, já tive
oportunidade de destacar em artigo publicado na Revista do Instituto dos
Advogados de São Paulo, em que apontei o COAF como sendo a Gestapo das
Atividades Financeiras no Brasil. Não porque essas atividades criminosas
não devam ser evitadas e punidas. Mas porque a lei, como está,
ultrapassa os limites da constitucionalidade, o que não podemos aceitar.
Neste abril de 2018, verifica-se que continua válido o que em 2005 escrevi sobre esse tema. E mais, não se pode atribuir foros de veracidade a simples acusações desprovidas de prova que alguém, estando sob a mira da "Lava Jato" ou de qualquer outro processo, venha a se colocar na posição de delator, ainda que se refira a essa pessoa como sendo colaboradora da Justiça. Desse modo, não basta a palavra de um delator sem prova cabal do quanto por ele alegado seja. Sem prova, de nada valerá a acusação, pois a quem acusa cabe o ônus da prova, ante a presunção de inocência do acusado.
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