segunda-feira, setembro 18, 2017

Da Liberdade de Tráfego e do Direito de Entregar Mercadoria



               
Trafegar é ir de um lugar para outro. Dentro de um mesmo município, de um mesmo estado, de um estado para outro, de um país para outro.
É o exercício do direito de ir e vir, que tanto pode ser exercido a pé, como por meio de qualquer veículo, ou até mesmo sobre um animal de montaria.
Suas restrições só são admitidas nos limites da lei, mas desde que essa lei não padeça de qualquer inconstitucionalidade, ou, mesmo sendo constitucionalmente válida, não seja aplicada em desacordo com a Constituição.
Isso se explica, porque no campo do Direito, no âmbito jurídico, sempre se deve perquirir não apenas sobre a constitucionalidade da lei, mas também sobre a necessidade de interpretação conforme a Constituição e sem redução de texto.
Assim, a interpretação conforme a Constituição é aquela que não descamba dos princípios e dispositivos do próprio texto constitucional. Já a interpretação sem redução de texto permite que a lei ou o ato normativo sejam interpretados de modo a se ajustar à Constituição, quando a ela não se oponha nem a contrarie.
No caso específico do direito de tráfego, é preciso distinguir o direito pessoal de trafegar, do direito de conduzir algum bem, produto ou mercadoria enquanto se trafega.
No primeiro caso, cuida-se de uma manifestação do direito de ir e vir por caminhos ou vias públicas.
No segundo, já não se trata mais do tráfego em si mesmo, mas de restrição ou ausência de restrição no que pertine ao objeto a que se relacione esse direito de ir e vir.
O tráfego de veículos automotores no Brasil submete-se  ao regime do Código de Trânsito Brasileiro, na competência da União Federal para legislar sobre  trânsito. Cabe, supletivamente, aos Municípios e aos Estados regular o tráfego por vias públicas,  respeitados os limites constitucionais desse poder.
DO ABUSO DE PODER
Haverá abuso de poder da autoridade municipal, estadual, distrital ou federal sempre que, sob o argumento de regular o tráfego em vias públicas, estiver, na verdade, a restringir ou impedir o tráfego de bens, produtos ou mercadorias conduzidos por qualquer veículo ou mesmo por qualquer animal de carga. Sejam veículos  automotores, sejam simples carroças puxadas por esses animais.
MEIO E OBJETO
Impõe-se, portanto, distinguir entre o meio de transporte e o objeto do transporte.
Se o objeto do transporte é objeto lícito, não poderá haver o cerceamento do direito do interessado de fazer esse transporte por meios permitidos, em vias públicas.
Nesse sentido, é inconstitucional e ilegal impedir o tráfego de veículos transportando bens, produtos ou mercadorias lícitos, mormente quando o impedimento ou a restrição se aplique discriminadamente contra determinado tipo de carga.
DISCRIMINAÇÃO VEDADA
A restrição ao transporte de carga por  vias públicas não pode ser discriminatória, salvo quando as particularidades da carga, por seu peso, tamanho, largura ou características químicas possam exigir licença prévia e especial de transporte, com as necessárias garantias para serem  evitados  acidentes com danos pessoais ou mesmo materiais
Dessa maneira, é ilegal e discriminatório  todo ato administrativo que imponha restrições de tráfego e de horário para a entrega de certas mercadorias ou produtos, que não ofereçam qualquer risco ao transportador nem a terceiros, no seu percurso do ponto de partida ao ponto de destino.
Assim, “verbi gratia”,  é ilegal e inconstitucional impor barreiras em vias públicas impedindo a passagem de veículos transportando materiais, como os  de construção civil, ou exigindo do transportador a obtenção de prévia licença municipal de tráfego com essa carga. Ou estabelecendo horário para esse transporte enquanto munido dessa prévia licença.
CASO TÍPICO
Caso típico de ilegalidade e de inconstitucionalidade verificou-se, em fins de agosto deste ano de 2017, no Município de São Bernardo do Campo,  Estado de São Paulo.
Ali, a Prefeitura Municipal, por recomendação da Procuradoria do Meio Ambiente, objetivando conter construções ilegais na região do chamado “pós-balsa”, editou Resolução Conjunta de número 001/2017, impondo exigência de obtenção de prévia autorização municipal para o transporte de materiais de construção e estipulando horário diurno para o tráfego desses veículos transportando esses materiais. Por essa resolução, barreiras físicas vieram a ser instaladas nas vias rurais de acesso a esses locais, e apenas automóveis ficaram com passagem  livre nessas barreiras,  vedada a passagem de veículos com materiais de construção entre 18:00 horas da noite e 6:00 horas da manhã seguinte.
DA LIBERDADE DE COMÉRCIO E DO DIREITO DO CONSUMIDOR
A venda e compra de materiais de construção se insere no contexto da liberdade de comércio. No direito do consumidor de comprar esses materiais, e no direito do vendedor, diretamente ou por intermédio de terceiros, de fazer a entrega da compra ao comprador, no local por este indicado.
O contrato de venda e compra de materiais de construção contém objeto lícito. Não há lei que o impeça. Do mesmo modo, não há lei que proíba o vendedor de fazer a entrega no  domicílio do comprador; nem há lei impedindo o comprador de receber a compra no seu domicílio.
EMPREGO DE MEIO ILEGAL
Inobstante a intenção da Municipalidade de coibir construções ilegais em áreas de preservação ambiental,  houve falha, houve inconstitucionalidade e houve  ilegalidade no meio empregado para alcançar esse objetivo.
Não se pode atribuir ao material de construção nem mesmo ao seu transporte ou ao seu transportador  qualquer responsabilidade ou culpa pelo seu uso em locais não permitidos por lei.
O problema está no local em que será utilizado, se se tratar de local proibido. Mas nunca, jamais, no transporte, em si mesmo, do material destinado à construção civil.
Não há lei que imponha esse tipo de vedação.
DISCRIMINAÇÃO
Em suma, a restrição ao tráfego de veículos de entrega de materiais de construção é ato discriminatório, ilegal e inconstitucional. Como o é, também, a exigência de obtenção de licença municipal de transporte desses materiais para sua entrega ser realizada por veículos de carga a qualquer hora do dia ou da noite, por vias públicas de livre acesso a qualquer outro veículo.
O que se tem, aí, é o cerceamento do direito de efetuar a entrega de mercadoria lícita sempre que o meio empregado para tanto seja o de transporte de carga. E, exatamente por isso, não se cuida, aí, de a Prefeitura legislar sobre normas de tráfego ou de trânsito. O objeto do transporte não se confunde com o meio empregado para sua realização.
Logo, a indigitada Resolução Conjunta 001/2017 acha-se eivada de ilegalidade e de inconstitucionalidade.