quinta-feira, agosto 17, 2017

A Estratificação da Jurisprudência do Supremo



E Como Reformar Suas Decisões

Plínio Gustavo Prado-Garcia

Levanto aqui uma questão: Será possível levar o Supremo Tribunal Federal a modificar sua própria jurisprudência, quando esteja ela  atada a julgamento de casos repetitivos?

Se entendermos que a resposta deve ser afirmativa (como entende este autor), surge outra questão: Como alcançar esse objetivo?

Cabe salientar aqui um primeiro ponto: O Supremo (como qualquer outro órgão judiciário) não age “sponte propria”. Não há ação judicial sem autor, e não há processo judicial de uma só parte, pois a essência do processo consiste na prevenção ou na solução de divergências no contexto da pacificação social.

Todavia, a própria sistemática do processo judicial vigente impõe sérias restrições para que a parte interessada na solução de divergências faça chegar o tema constitucional à última instância judiciária, à qual caberia dar-lhe ou não razão.

Basta lembrar que se estivermos diante de casos repetitivos envolvendo tema já decidido nesse contexto pelo Supremo Tribunal Federal, seus recursos não mais precisarão ser para ali encaminhados e ali julgados. A esses casos, se aplicará o precedente, o princípio do “stare decisis”.

Em outras palavras, se alinhados com o precedente, serão já considerados providos, baixando-se os autos à instância inicial. Se conflitantes, deixarão de ser providos e descerão, igualmente à instância de origem.

Que fazer, entretanto, se a tese suscitada na ação sobre um mesmo tema já julgado pelo Supremo na sistemática dos casos e recursos repetitivos contiver nuances e fundamentos jurídicos distintos daquele primeiro caso em que veio o Supremo a estabelecer o precedente judicial, que resulte na imposição do respeito ao “stare decisis”? Evidentemente, esse precedente não poderá  ser aí aplicado. Se o for, teremos uma bizarra situação, evidenciando, equivocadamente, que a jurisprudência se tornou petrificada, consolidada, onde,  talvez, exista, por assim dizer, um campo de areia movediça. Sim, movediça porque o Direito não é estático. Muda com o tempo, com as condições  sociais e políticas que decorrem da vida em sociedade. Da coexistência humana.

Basta lembrar que a própria escravidão já fora considerada legal. Que a pena de morte pôde ser aplicada no Brasil, sendo vedada sob  a Constituição de 1988.

De igual maneira, no campo tributário, notamos uma jurisprudência cambiante, em que o certo passa a deixar de ser certo, e errado passa a ser considerado legal ou constitucionalmente certo. Geralmente para favorecer o Fisco.

No entanto, há, evidentemente, um limite para esses equívocos, para essas interpretações equivocadas, encontrando-se esse limite no próprio texto e no espírito da Constituição, nos princípios em que ela se embasa.
Em nossa prática profissional, nós, advogados, temos enfrentado decisões judiciais cerceando o direito de nossos clientes chegarem, nos seus pleitos, às instâncias superiores (STJ e Supremo Tribunal Federal), porque juízes de primeira instância e mesmo magistrados das instâncias intermediárias, inclusive presidentes e vice-presidentes de Tribunais simplesmente invocam decisões superiores do STJ e do Supremo como se automaticamente tivessem aplicação ao caso “sub judice”.

Ora, o efeito vinculante das decisões do Supremo e mesmo do Superior Tribunal de Justiça, adotadas na sistemática  do julgamento de casos repetitivos, não pode ser transformado em um intransponível obstáculo à prestação jurisdicional no caso concreto instaurado antes ou mesmo depois do estabelecimento desse precedente. 

Isso significa que o princípio do “stare decisis” (como teve este autor oportunidade de estudar no seu mestrado de Direito Comparado – Prática Americana,  em Washington, DC na G. Washington University, National Law Center) exige o atendimento de certos requisitos fáticos e jurídicos.
Não se aplica o “stare decisis” se os fatos, os fundamentos jurídicos, a causa de pedir e o pedido apresentados ou formulados em determinada ação judicial tenham alguma diferença em relação ao precedente judicial.

Nesse sentido, o vigente Código de Processo Civil contém esses requisitos mínimos para que se possa decidir se determinada causa se apresenta igual a uma outra anterior, não podendo mera semelhança servir de amparo para que a solução encontrada no precedente se torne vinculante e se aplique, automaticamente, ao caso que ainda aguarde julgamento e decisão final.
Vale isso dizer que similitude de causas não é igualdade de causas. O que se assemelha, apenas  parece ser. Mas não  o é. Basta que haja disparidade de situação de fatos; que haja distintos  fundamentos de direito; causa de pedir diferente uma do outra, e pedidos desiguais entre si.

Significa, também, que a razoabilidade deve aí intervir em benefício da parte que demonstra alguma disparidade entre seu caso e a decisão invocada, adotada contra ela no contexto do julgamento de casos repetitivos ou de decisões do Supremo com efeitos vinculantes.

Assim, um julgado do Supremo negando provimento por decisão de mérito a Recurso Extraordinário no qual o recorrente esteja arguindo que determinada lei ou dispositivo de lei fira certo artigo da Constituição de nada prestará, se o fundamento jurídico desse mesmo Recurso Extraordinário for outro, distinto do invocado no caso que haja resultado nesse precedente. Não poderá operar-se aí o princípio do “stare decisis” contra esse recorrente. E, exatamente por isso, esse seu Recurso Extraordinário não poderá deixar de ter seu regular andamento e julgamento de mérito, uma vez preenchidos os demais requisitos processuais para sua admissão e decisão final.

Somente em assim pensando e no assim decidindo se poderá ver a jurisprudência seguindo seus corretos caminhos na administração da justiça.